PADRE MATEUS PINHO GWENJERE: UM GRANDE HERÓI E MÁRTIR REVOLUCIONÁRIO

(HOMENAGEM NO SEU 90º ANIVERSÁRIO NATALÍCIO)

Nesta data do teu aniversário natalício, presto-te homenagem, Padre Mateus Pinho Gwenjere, por tudo o que fizeste pelo povo moçambicano. Quando disseste ao governo colonial português: “Estou pronto para defender a causa do povo negro até ao último suspiro”, tu tinhas tomado consciência da tua missão aqui na terra – uma vida inteiramente dedicada aos outros.

A tua abnegação representa uma fonte de inspiração e de orgulho para as gerações presentes e vindouras. O Presidente Eduardo Mondlane descreveu-te como “um dos mais importantes combatentes da liberdade que a FRELIMO conseguiu trazer para o exterior”. Pela minha parte, digo que, na história de Moçambique, não conheço outro moçambicano que tanto lutou para garantir ao povo moçambicano os seus direitos à liberdade, à justiça, e ao bem-estar.

“Estou pronto para defender a causa do povo negro até ao último suspiro” (Pe. Gwenjere in Arquivos da PIDE – Janeiro 1967)

O teu depoimento nas Nações Unidas em Nova Iorque fez “gelar o sangue nas veias” dos delegados da Quarta Comissão. Com apenas três anos de sacerdócio, distinguiste-te com os teus conceitos duma “Igreja Católica dividida” e da necessidade duma “Igreja Profética de Cristo” em Moçambique. Depois de desmascarar a Igreja Católica “Salazarista” liderada pelo Cardeal-Arcebispo Dom Teodósio Clemente de Gouveia e seu sucessor, Dom Custódio Alvim Pereira, explicaste como a “Igreja Profética de Cristo” deveria se comportar:

“As normas fundamentais do cristianismo são  a   caridade  e  a justiça. A Igreja não pode  só ter preocupações místicas, deve também preocupar-se com os problemas sociais […]. A Igreja tem o dever de procurar e encontrar modo de equilibrar as relações humanas. Onde não existe caridade, não haverá justiça […]. Os missionários portugueses estão a prejudicar o cristianismo ao não cumprir a missão que lhes foi confiada pela Igreja.”

Logo após a tua ordenação como diácono, em Julho de 1963, dirigiste uma carta ao Bispo da Beira, Dom Sebastião Soares de Resende, solicitando a sua intervenção numa altura em que os nativos passavam fome devido às cheias descontroladas que destruíram as suas plantações no Vale do Zambeze.

“[…] Se o Governo (Português) tem dinheiro para comprar munições de guerra para autodefesa, como é que não pode empregar uma milésima parte desse dinheiro para salvar estes pobres desemparados? Agradecia o favor de comunicar ao Senhor Governador  tudo  isto […]. Queira V. Exa. Revma. compreender-me como um filho que chora pelos seus irmãos  miseráveis  e  desamparados.”

Escreveste esta carta em tom contundente sem te preocupares que corrias o risco de não seres ordenado sacerdote, tendo em conta que o Arcebispo Dom Custódio Alvim Pereira havia advertido que a Igreja Católica em Moçambique não ordenaria seminaristas que constituíssem “um problema para o governo colonial português”.

Em 2 de Maio de 1964, foste convocado  pelo  governo  de Manica e Sofala e  convidado  a  participar  do  grupo  de  padres  que eram   espiões.   A     tua    tarefa    seria    de   espiar   os  “Padres   Brancos”  na  Missão   de  Murraça, tendo  sido  prometido   que   os   “Padres   Brancos”    seriam   expulsos e  tu  serias promovido para  Padre Superior  daquela Missão. A PIDE prometeu comprar-te uma motorizada e depois um jeep. No entanto, tu não só recusaste esta tarefa e a oferta, mas informaste os Padres Brancos e o Bispo Dom Sebastião Soares de Resende sobre o ocorrido.  Ao aperceber-se da tua “traição”, a PIDE ficou muito irritada, tendo-te assim marcado como um inimigo a abater.

Logo que te estabeleceste no teu posto na Missão de Murraça, começaste a protestar contra os maus-tratos infligidos aos teus irmãos negros. Um dia, os controladores da ferrovia interceptaram uma mulher que caminhava ao longo da ferrovia saindo duma moagem. Sem qualquer aviso, eles pegaram no seu saco cheio de farinha de milho e deitaram-no fora. Tu que passavas de motorizada, saindo da vila de Caia, encontraste a mulher a chorar. Depois de ouvir as suas queixas, levaste-a na tua motorizada até à sede ferroviária na vila de Caia, onde obrigaste os funcionários da ferrovia a compensá-la pela farinha de milho que os controladores deitaram fora  durante um período de escassez de alimentos. Os funcionários da sede ferroviária de Caia compraram e entregaram à mulher um saco de farinha, peixe seco e óleo de cozinha.

Depois deste incidente e do incidente do catequista da Missão de Murraça que foi esbofeteado pelo capataz da Trans-Zambezi Railway (TZR) por ter caminhado ao longo da ferrovia, fugindo a estrada que não dava passagem devido à chuva, tu começaste a dizer aos nativos abertamente para desrespeitar as ordens que os proibiam de caminhar ao longo da ferrovia. Tu dizias: “Já que os portugueses não  conseguem consertar e reparar estradas, os negros têm todo o direito de andar pela via férrea”.

Em Abril de 1965 na estação ferroviária de Caia, insultaste o factor branco que estava a vender os bilhetes, chamando-lhe de gatuno, por estar a levar mais 1 escudo do que o normal. Incitaste os passageiros que aguardavam a partida do comboio para Murraça a devolverem os bilhetes àquele factor. Foi-te instaurado um processo-crime pelo “incitamento e injúrias contra os brancos”, ao qual respondeste no Tribunal da Beira.

Advertias os teus irmãos negros para se recusarem a trabalhar para a PIDE. Um dia, tiveste a seguinte conversa com um informador da PIDE:

“Você agora trabalha para Portugal? […] Você, pá, está muito enganado com os portugueses. […] eu sou padre e quero que toda gente viva da melhor maneira possível neste mundo onde não há brancos nem pretos. Todos nós somos iguais e porque é que você está a favor dos portugueses?” 

Em Agosto de 1965, um ano após a tua ordenação como sacerdote, escreveste outra carta ao Bispo Dom Sebastião Soares de Resende, protestando contra os maus-tratos de que eram vítimas os teus irmãos negros. Pediste ao Bispo que comunicasse superiormente o constante aparecimento de cadáveres no rio Zambeze, devido a mortes causadas por tropas portuguesas, alertando que os assassinatos provocariam uma revolta dos nativos, fazendo com que, no futuro, portugueses inocentes pagassem pelos erros dos outros.

“Tudo quanto está a acontecer apenas leva à revolta das populações. As tropas poderão matar milhares, mas o problema não estará resolvido […]. Amanhã, os inocentes virão pagar pelos erros dos outros.”

Dito e feito: A tua visão profética se concretizou logo após a independência de Moçambique. O governo marxista da FRELIMO embarcou numa política de intervenções radicais que forçaram um êxodo maciço de colonos portugueses para Portugal.

Com centenas de páginas que li sobre ti na Torre do Tombo em Lisboa, atrevo-me a dizer que a PIDE continha sobre ti o maior dossiê destinado aos nacionalistas das colônias portuguesas. Devido às tuas atividades consideradas “altamente prejudiciais” pelo regime colonial português, a PIDE não cessava de advertir as autoridades coloniais para que tomassem medidas urgentes contra ti por seres “um homem que exerce grande influência sobre os africanos”.  

Por defenderes os direitos dos negros à sua cultura e língua, substituíste a Missa em português por ti celebrada em Caia pela Missa em cisena, acompanhada de cânticos neste idioma e com o bater de palmas e batuques, para o aborrecimento da comunidade europeia local que considerava esta forma de celebrar a Missa como sendo “menos digna e menos solene. Anunciaste a celebração da Missa em cisena com a seguinte nota no quadro de avisos:

“A Missa passa a ser dita em Chisena, pois não quero ir para o inferno por estar a fazer teatro”.

Quando Ramiro dos Santos Paiva se tornou administrador de Caia, muitas mulheres negras eram presas porque os seus maridos andavam fugitivos  para não pagar o “imposto domiciliário”. Tu, que frequentemente visitavas as prisões exigindo a sua libertação, conseguiste mandar libertar 130  mulheres que estavam presas.

Opunhas-te à plantação de culturas de rendimento imposta pelo regime colonial português em detrimento da produção de culturas alimentares. À medida que crescia o número de colonos brancos que ocupavam terras férteis, tu ias de casa em casa mobilizando os teus irmãos negros para a desobediência civil e exortando-os a se recusarem a cultivar algodão e a serem removidos à força das suas terras de origem.

Com o teu aparelho de rádio, estabelecias contato com as teus colaboradores da FRELIMO dentro de Moçambique e no Malawi, recebendo mensagens como esta: “recebida almadia com os cinco cabritos para o casamento de (fulano)”, a significar que “os cinco jovens que enviaste à FRELIMO na Tanzânia chegaram ao seu destino”. 

Padre Mateus Gwenjere nas montanhas do Seminário do Zóbuè em 1966, com o seu aparelho de radio, estabelecendo contactos com os seus colaboradores da FRELIMO. Fonte: Dr. Josef Pampalk

Um mês após a morte do Bispo da Beira, Dom Sebastião Soares de Resende, que era o teu protetor, a PIDE decidiu interrogar-te. Segundo a conclusão do interrogatório, tu não podias continuar na região de Murraça, um “lugar permeável à subversão”, porque vias “os (teus) deveres do sacerdócio como contrários aos deveres de cidadão português”.

Segundo os Arquivos da PIDE, após o interrogatório, convocaste uma reunião com todos os alunos e professores da Missão de Murraça, acusando alguns deles de trabalharem para a PIDE:

“Aqui andam meninos na Escola que não estão aqui para estudar, mas sim para ouvir o que se diz e ver o que se passa, para irem contar lá fora, porque trabalham para a PIDE, só para nos lixarem […]. Se eu quisesse trabalhar para a PIDE já há muito que me tinham dado uma moto ou um jeep, mas […] eu quero que ela vá à merda (sic) […]. Já tenho estado sentado no banco dos réus, no tribunal da 2a. vara,  da   Beira,  por culpa dos  brancos,  pois estes só estão em Moçambique  para  fazer  o  mal.” 

A 3 de Junho de 1967, recebeste uma carta do Vigário Geral da Diocese da Beira, informando-te da tua transferência para a Paróquia de Macuti na cidade da Beira. Por não concordares com a transferência, decidiste deixar Moçambique rumo à Tanzânia para ingressares na FRELIMO.

Tu que tinhas grandes expectativas sobre a FRELIMO, foste confrontado com a realidade logo após a tua chegada à Tanzânia. Este movimento encontrava-se em tumulto após o assassinato do Secretário de Defesa e Segurança da FRELIMO Filipe Samuel Magaia.

Os problemas que surgiram no rescaldo do assassinato de Magaia levaram-te a questionar algumas políticas da liderança da FRELIMO, incluindo os maus-tratos e as execuções sumárias de combatentes; a priorização da política de “guerra prolongada”; a concentração do poder político-militar e de segurança em torno do grupo de “Sulistas”; a nomeação de moçambicanos brancos de origem portuguesa como professores do Instituto Moçambicano; e a falta de convocação de qualquer congresso ou conferência para resolver problemas internos. Durante um ano e meio em que militaste na FRELIMO na Tanzânia, forçaste reformas jamais vistas naquele movimento.

Padre Mateus Gwenjere no Quênia informando um funcionário da ONU, William Sach, sobre a situação conturbada do movimento FRELIMO. Fonte: Lawe Laweki

Por teres obrigado a FRELIMO a realizar o Segundo Congresso e reformas em tudo que questionavas, em pouco tempo colidiste com a liderança deste movimento. O Presidente Mondlane que foi persuadido pelo presidente tanzaniano, Julius Nyerere, a deixar o seu emprego nas Nações Unidas para liderar a frente unida, não estava nada satisfeito com a tua interferência no andamento do movimento. Ele constantemente aproximava-se do líder tanzaniano, pedindo para te expulsar daquele país. Sabe-se, no entanto, que tu estavas protegido da deportação na Tanzânia. O Presidente Nyerere recusava-se terminantemente a expulsar-te daquele país, pois que as reformas que exigias tinham o apoio dos líderes tanzanianos.

Durante o período em que militaste na FRELIMO na Tanzânia, procuraste  igualmente incutir um espírito mais humano à Revolução Moçambicana. Desprovido de ambição pelo poder político, trabalhaste incansavelmente para a tua única e principal preocupação: a libertação de Moçambique do jugo colonial português.

Os nossos destinos cruzar-se-iam novamente em Nairobi, no Quênia. No final de 1969, fugi do Campo de Refugiados de Rutamba em Tanzânia onde os estudantes do Instituto Moçambicano haviam sido desterrados quando a liderança da FRELIMO decidiu encerrar o Instituto. Em 1972, quando tu percebeste que a liderança de Samora-Marcelino dos Santos queria te eliminar fisicamente, também deixaste Tabora para o Quênia.

Em Nairóbi, no Quênia, morávamos no mesmo bairro, Riruta-Kawangware, nos arredores da capital queniana, onde todos os domingos eu, assim como outros refugiados moçambicanos, assistíamos à Missa que tu celebravas na Igreja Católica local. Foi enquanto vivias no exílio no Quênia que foste raptado em 10 de Outubro de 1975 pelos agentes do governo da FRELIMO e cruelmente assassinado. Os teus restos mortais nunca foram encontrados.

Descanse em paz, meu querido padre amigo! Até um dia! Sei que lá no Paraíso onde estás, continuas a suplicar pelo bem-estar do martirizado povo moçambicano. Contrariamente à vontade do governo da FRELIMO, a verdade sobre ti já foi reposta por nós e ela prevalecerá. Jamais serás apagado da memória do povo moçambicano a quem dedicaste a tua vida. Serás doravante lembrado como um grande herói e mártir revolucionário!


NB: Pode ler este e outros artigos relacionados no https://umpadrevolucionario.com

As referências bibliográficas e notas finais deste artigo foram omitidas. Uma referência detalhada pode ser encontrada na segunda edição do livro “Mateus Pinho Gwenjere – Um Padre Revolucionário” a partir do qual este artigo foi extraído. O livro encontra-se à venda nas livrarias das cidades de Maputo e Beira.