OS CONFLITOS HISTÓRICOS NO MOVIMENTO DA FRELIMO FORAM ÉTNICO-REGIONAIS (Parte 2 de 3)

Pouco depois da morte do Presidente Eduardo Mondlane, o grupo Samora-Marcelino dos Santos convocou Uria Simango para uma reunião que convenientemente foi realizada no Campo Militar da FRELIMO em Nachingwea. Durante os 11 dias da reunião (de 11 a 21 de Abril de 1969), Simango sofreu duras críticas por parte deste grupo que o acusou falsamente a si e aos seus colaboradores mais próximos, nomeadamente, Silvério Nungu e Samuel Dhlakama, de envolvimento directo no assassinato do Presidente Mondlane. Na mesma reunião, o grupo Samora-Marcelino dos Santos tomou decisões em nome do Comité Central da FRELIMO. O grupo formou um triunvirato, com o único objectivo de neutralizar o vice-presidente eleito, Uria Timóteo Simango.

Embora, ideologicamente, Marcelino dos Santos fosse considerado mais próximo de Simango, ele decidiu juntar-se ao grupo de “Sulistas” para impedi-lo de substituir o Presidente  Eduardo Mondlane.  Importa lembrar que Simango havia antagonizado o grupo dos “Não-Nativos”, o que se agravou com a chegada do Padre Mateus Gwenjere a Dar-es-Salaam. Naturalmente, isso levou a um rompimento entre os dois grupos, isto é, entre o grupo dos “Não-Nativos” e o grupo dos “Nortenhos”.

Quando o Presidente Eduardo Mondlane morreu, Uria Simango contava com o apoio da grande maioria dos militantes da FRELIMO, de alguns membros do Comité Central, bem como de militantes que ocupavam cargos de chefia. No entanto, como responsável pelos assuntos internos no triunvirato, Samora  Machel reforçou a sua posição, criando várias subsecções do Departamento de Defesa, incluindo o Comissariado Político Nacional, liderado por indivíduos leais a ele. Tendo reforçado a sua posição e constituído uma base de poder político-militar, o grupo Samora-Marcelino dos Santos declarou guerra aos apoiantes de Simango, desferindo um duro golpe na sua posição.

Muitos apoiantes proeminentes de Simango foram mortos e outros foram expulsos do Comité Central e da liderança do movimento da FRELIMO, incluindo Francisco Kufa, Cerejo Mateus, Henrique Cabral, Domingos Tesoura, Wills Kadawele, Alexandre Magno, […], tendo os dois últimos acabando por se entregar ao regime colonial português.

Anos mais tarde, Presidente Samora Machel revelaria aos jornalistas moçambicanos como ele e Marcelino dos Santos conseguiram neutralizar o Simango e os seus apoiantes:

“Foram expulsos vários elementos das fileiras da Organização, outros foram expulsos do Comité Central. Foi constituído um Conselho da Presidência que, pela sua composição, garantia a neutralização do reaccionário Uria Simango e assegurava a aplicação das directrizes revolucionárias do Segundo Congresso e da III Sessão do Comité Central.”

Dado o seu intelecto e domínio da língua  portuguesa, o grupo de “Não-Nativos” ocupava posições-chave durante o reinado de Samora-Marcelino dos Santos, como a  tarefa de traçar a linha de pensamento político-ideológico do  movimento da FRELIMO. Tendo cerrado fileiras com o grupo de “Sulistas”, este grupo, que exibia um pensamento radical, concebeu termos marxistas que dividiram os militantes da FRELIMO em “revolucionários” e “contra-revolucionários” ou “reaccionários”. 

Em aliança com o grupo de “Sulistas”, este grupo lançou uma campanha para “purificar” as fileiras do movimento da FRELIMO,  declarando guerra aos chamados “contra-revolucionários” ou “reaccionários”, como assim eram apelidados os militantes que apoiavam Uria Simango e o grupo Gwenjere-Nkavandame. Importa referir que esses militantes assim apelidados constituíam a maioria no movimento da FRELIMO.

Com a sua caneta  rancorosa, vingativa e venenosa, este grupo submeteu o Padre Gwenjere à uma campanha de assassinato de carácter, acusando-o de ser anti-branco e agente da PIDE, embora sabe-se que este Padre passou a maior parte da sua vida vivendo com brancos. Viveu com brancos nos Seminários de Zóbuè e de Namaacha. Ele também conviveu com brancos durante o seu sacerdócio na Missão de Murraça onde o Padre Charles Pollet o chamava de “meu filho”. Durante a sua permanência em Nairóbi, viveu na mesma casa com um activista alemão chamado Willy Shultz que pretendia levá-lo para a Alemanha antes de ser sequestrado por agentes da FRELIMO. Por outro lado, não se entende como um anti-branco (também anti-português) se torna ao mesmo tempo um agente da PIDE (Polícia de Defesa do Estado Português).

O mesmo grupo acusou o Padre Gwenjere de ser o responsável pela revolta estudantil no Instituto Moçambicano em Dar-es-Salaam, uma revolta que, conforme admitiu o Presidente Mondlane, começou quando o Comité Central da FRELIMO introduziu novos e radicais regulamentos estudantis em Outubro de 1966, um ano antes da chegada deste Padre na Tanzânia. O Padre foi ainda acusado de envolvimento no assassinato do Presidente Mondlane, sabendo-se que aproximadamente dois meses antes do assassinato, ele tinha sido detido e, imediatamente após a sua soltura em 7 de Janeiro de 1969, foi levado para a região de Tabora no centro-oeste da Tanzânia, a cerca de 1.000 km de Dar-es -Salaam, onde foi confiado aos cuidados do Arcebispo Mark Mihayo, da Arquidiocese de Tabora, para se dedicar exclusivamente às suas atividades religiosas.

Tendo tomado conhecimento da sua neutralização e da neutralização dos seus apoiantes, Uria Simango publicou um documento em inglês intitulado “The Gloomy Situation in FRELIMO” (“A Situação Sombria na FRELIMO”) a 3 de Novembro de 1969. No documento, de 13 páginas, entregue ao Governo de Tanzânia e ao Comitê de Libertação da OUA, Simango acusou o grupo Samora-Marcelino Santos de fomentar “sectarismo, tribalismo e regionalismo”; de realizar reuniões privadas e tomar decisões em nome do Comitê Central; e de ser “responsável pela morte de Silvério Nungu bem como de outros militantes do movimento”.

O grupo Samora-Marcelino dos Santos rejeitou as acusações contidas no documento de Simango, acusando-o, por sua vez, de ser contra-revolucionário e de servir os interesses do colonialismo e do imperialismo. Indo mais longe, o grupo tomou a decisão de expulsar Simango do triunvirato, do Comité Central, bem como do próprio movimento da FRELIMO.

Muito embora desavindo com o Padre Mateus Gwenjere na altura, Uria Simango aceitou a sua colaboração. De Tabora, onde estava desterrado, o Padre convocou o “Baraza-la-Wazee” (Conselho dos Anciãos) para se reunir ao seu redor:

“Uria Simango dá início em 17 de Dezembro de 1969 a uma série de reuniões num bairro dos arredores da Dar-es-Salaam, em que congrega elementos desafectados ao partido, […] dependentes espiritualmente do Pe. Mateus.”

Essas reuniões que Uria Simango teve com os membros do “Baraza-la-Wazee” resultaram numa petição enviada ao Vice-Presidente da Tanzânia Rashidi Kawawa, solicitando um encontro com Boke Mundaka, coordenador do governo da Tanzânia com os movimentos de libertação. Entretanto, o grupo Samora-Marcelino dos Santos, por sua vez, também solicitou o mesmo tipo de reuniões com as autoridades tanzanianas e com o Comité de Libertação da OUA.

Refira-se que a nova aliança entre Uria Simango e o Padre Mateus Gwenjere chegou tarde demais para ter qualquer efeito significativo sobre os eventos que se desenrolaram posteriormente. O golpe usado pelo grupo Samora-Marcelino dos Santos para fazer valer a sua causa, fez com que Samora Machel fosse visto externamente, principalmente pelo Comité de Libertação da OAU, como o líder incontestável da maioria no movimento da FRELIMO. Dinis Moiane que era o chefe do Campo de Treino Militar de Nachingwea tornou-se um elemento-chave nas manifestações anti-Simango realizadas pelos combatentes da FRELIMO a mando do grupo Samora-Marcelino dos Santos: Quando Uria Simango publicou o seu documento, Dinis Moiane organizou manifestações de combatentes em apoio ao grupo Samora-Marcelino dos Santos e repudiando as acusações contidas no documento de Uria Simango.

Como se não bastasse, este grupo moveu  uma perseguição aberta a Uria Simango. Com os seus seguidores e colaboradores próximos neutralizados e dispersos, Uria Simango chegou de viver escondido e sob a protecção do governo tanzaniano. Em 19 de Fevereiro de 1970, ele seria expulso do território tanzaniano pelo Governo de Tanzânia.

O PERÍODO MAIS SANGRENTO DA REVOLUÇÃO MOÇAMBICANA
Tal como o reinado do sanguinário líder soviético, Josef Stalin, o período da liderança do grupo Samora-Marcelino dos Santos foi o mais sangrento da Revolução Moçambicana, que consistiu na aplicação da força das armas para incutir medo e impor ordem aos militantes.

O grupo Samora-Marcelino dos Santos embarcou numa extensa expurgação de elementos que eram basicamente “Nortenhos”, como correctamente observou Miguel Murupa que foi vice-secretário de Relações Externas do movimento da FRELIMO e um colaborador directo de Uria Simango. Ele rendeu-se ao regime colonial Português no auge da crise de 1968-1970 na FRELIMO:

“Quem conseguiu escapar, escapou. Mas muitos foram assassinados. Eram sempre do Norte […] este tipo de coisas, até a FRELIMO chegar a ser só como partido da gente do Sul.”

Ainda de acordo com Miguel Murupa, havia uma política bem estabelecida de envio de combatentes indesejados para o interior de Moçambique, onde eram posteriormente abatidos, sob a alegação de que foram as tropas portuguesas, o inimigo, que os abateram:

“O meu caso foi desses, de ser integrado (pausa), integraram-me nesse grupo para depois ser abatido. Mas, felizmente, eu tinha comigo (pausa) um deles é o (Raimundo) Pachinuapa que me salvou […]. Foi ele que me salvou porque sabia (que) Miguel aí vai ser abatido. E ele mandou três homens, dois para irem para este combate e um para me acompanhar, (para) tirar-me dali. Foi assim que me salvei.”

NB: Pode ler este e outros artigos relacionados no  https://umpadrevolucionario.com. Se for abrir o blog no celular, verá três barras do lado direito da capa. Ao clicar nas barras, aparecem os diferentes sítios do blog, como “Home” onde se encontram os artigos deste autor; “Guest Post” onde pode encontrar os “Artigos de Opinião” dos leitores; e “Book Review” onde pode encontrar os artigos dos leitores que disponibilizaram a resenha crítica do livro ‘‘Mateus Pinho Gwenjere-Um Padre Revolucionario’’. Contribua com o seu conhecimento para o bem-estar do povo moçambicano. Leia, acompanhe e partilhe a verdadeira história da luta de libertação de Moçambique e dos conflitos internos no seio do movimento da FRELIMO.


As referências bibliográficas e notas finais deste artigo foram omitidas. Uma referência detalhada pode ser encontrada na segunda edição do livro “Mateus Pinho Gwenjere – Um Padre Revolucionário” a partir do qual este artigo foi extraído. O livro encontra-se à venda nas livrarias das cidades de Maputo e Beira.