É importante que presentes e futuras gerações moçambicanas conheçam a verdadeira história de Moçambique. Isto lhes permitirá evitar que os erros do passado se repitam no futuro, garantindo subsequentemente paz e estabilidade duradouras no país.
Na STV Noite Informativa do dia 27 de Julho de 2022, o Dr. Hélder Martins acusou o Padre Mateus Pinho Gwenjere de ser racista, tribalista e regionalista; de ser agente da PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) e suspeito na morte do Presidente Eduardo Mondlane; e de ser responsável pela crise de 1968 no Instituto Moçambicano em Dar-es-Salaam, Tanzânia. Nenhuma dessas acusações é verdadeira, como estas páginas demonstrarão.
Começo por transcrever na íntegra os pronunciamentos do Dr. Martins sobre o Padre Gwenjere e o Instituto Moçambicano:
“A uma certa altura que a PIDE organiza todo um processo que tem por base o Padre Mateus Gwenjere, agente da PIDE. Eu quando escrevi o meu livro de memórias, “PORQUÊ SAKRANI? MEMÓRIAS DUM MÉDICO DUMA GUERRILHA ESQUECIDA”, naquela altura ainda não tinha acesso a certos documentos que eu tive posteriormente. Hoje se prova que o Padre Mateus Gwenjere era um agente da PIDE. E os portugueses chegaram a preparar uma operação da sua marinha para ir resgatá-lo em Dar es Salaam quando ele foi considerado suspeito na morte do Presidente Mondlane. Só que os portugueses eram tão burocráticos, demoraram tanto tempo, que ele acabou fugindo para o Quênia. Mas deixe me voltar ao Instituto: Ele começa a partir de Murraça, da missão onde ele estava, a enviar estudantes da zona de Senas e Ndaus, daquela zona, ao Instituto Moçambicano. O que também teve outra consequência: esses estudantes eram adolescentes, muito jovens, ao contrario dos estudantes que estavam lá há mais tempo, que a maioria deles tinham idades superiores ao que e’ habitual para as classes em que se encontravam. Bom, entretanto, o próprio Padre Gwenjere vem infiltrar-se na FRELIMO. E ele e´ muito bem recebido na FRELIMO porque a Igreja Católica sempre tinha estado ligada ao colonialismo português, sempre tinha apoiado o colonialismo português. Então ter um padre católico, ainda por cima moçambicano, negro, a favor do movimento de libertação era uma coisa muito boa. O Presidente Mondlane ficou encantado. Ele foi enviado para as Nações Unidas para fazer propaganda, o que era coisa normal. Simplesmente, ele começou a criar toda uma tensão no Instituto e onde e’ que ele pegou? E’ que os professores do Instituto eram quase todos brancos: era a minha primeira mulher Helena Teixeira, era o Fernando Ganhão, era o Jacinto Veloso, eram os Minters, eram mais duas professoras – uma sueca e outra australiana. A sueca era Birgitta. A outra já não me recordo do nome. E então ele começa numa campanha também racista. E outra coisa que ele fez: naqueles estudantes todos do Instituto, independentemente das idades, a criar a ideia que os estudantes não deviam combater, os estudantes deviam ir estudar para vir servir o pais num futuro que não se sabia qual era, quando a tarefa daquele momento era combater. Portanto, os estudantes deviam (pausa), por exemplo, foram criados programas de férias para os estudantes irem fazer treino militar – os maiores, não os mais pequenos, mas os maiores. Havia muitos com mais de 16 anos para irem fazer o treino militar. Então ele criou uma confusão e ele aproveitou (pausa) misturou tribalismo com racismo, com regionalismo e criou aquela confusão toda.”
Contando-me entre os moçambicanos que testemunharam acontecimentos importantes na história do movimento da FRELIMO, sinto que tenho a autoridade necessária para rebater os pronunciamentos do Dr. Martins e relatar os acontecimentos que realmente ocorreram no movimento da FRELIMO, deixando que o leitor melhor avalie onde é que reside a verdade.
Não é a primeira vez que o Dr. Hélder Martins afirma que o Padre Gwenjere foi agente da PIDE alegando ter provas. No entanto, em nenhum momento apresentou tais provas ao povo moçambicano. Ele acusa o Padre Gwenjere de ser agente da PIDE, mas ao mesmo tempo afirma que este Padre mobilizou e recrutou muitos jovens moçambicanos para o movimento da FRELIMO, esquecendo que, como agente da PIDE, e mesmo que não fosse, estava proibido de mobilizar e recrutar pessoas, incluindo estudantes, para se juntarem ao movimento “terrorista” da FRELIMO. Por outro lado, entristece-me ver um histórico do seu nível confundir as áreas étnicas de Moçambique ao afirmar que a Missão de Murraça se localiza na zona de Senas e Ndaus.
O Dr. Hélder Martins mente descaradamente ao alegar que “os portugueses chegaram a preparar uma operação da sua marinha para resgatar” o Padre Gwenjere que, segundo ele,fugiu para o Quênia quando foi considerado suspeito na morte do Presidente Mondlane. Importa realçar aqui que Helder Martins não estava na Tanzânia quando o Presidente Mondlane foi morto a 3 de Fevereiro de 1969. Ele havia sido expulso daquele país em meados de 1968. Mas isso não é desculpa para ele não conhecer a história da FRELIMO. Afinal, não foi entrevistado porque o entrevistador o considerou perito na matéria?
Aqui está a verdade : Aproximadamente dois meses antes do assassinato do Presidente Mondlane, o Padre Gwenjere foi detido pelo governo tanzaniano, sem explicação, até 7 de Janeiro de 1969, quando foi levado para a região de Tabora, no centro-oeste da Tanzânia, a cerca de 1.000 km de Dar-es-Salaam, onde foi confiado aos cuidados do Arcebispo Mark Mihayo, da Arquidiocese de Tabora, para se dedicar exclusivamente às suas actividades religiosas.
No seu depoimento na Quarta Comissão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, em Novembro de 1967, o Padre Mateus Pinho Gwenjere destacou os dois tipos de relações que existiam entre a Igreja Católica e o Estado português naquele período colonial. Segundo este Padre, enquanto a Igreja Católica “Salazarista”, liderada pelo Cardeal-Arcebispo Dom Teodósio Clemente de Gouveia e o seu sucessor, Dom Custódio Alvim Pereira, da Arquidiocese de Lourenço Marques, defendia os interesses do regime colonial português; a Igreja Católica “Profética”, liderada pelo Bispo da Beira Dom Sebastião Soares de Resende, defendia os direitos do povo moçambicano à autodeterminação e à independência.
Concorrendo com o Padre Gwenjere sobre a existência de uma Igreja Católica dividida em Moçambique está o conhecido escritor português, Luís Salgado de Matos, que escreveu o seguinte:“A Guerra Colonial dividiu a Igreja em Moçambique, que foi o único episcopado de matriz portuguesa que não manteve a regra da unidade pública.” Continuando, Luís Salgado de Matos escreveu que uma parte da Igreja Católica, “cujo elemento mais vocal era o Arcebispo de Lourenço Marques, Dom Custódio Alvim Pereira, defendia expressamente a soberania portuguesa”, enquanto que a outra parte “atacava abertamente a identificação da Igreja com Portugal e preparava-se para defender o direito à independência”.
Na verdade, as evidências sugerem a existência de relações mistas em Moçambique entre a Igreja Católica e o Estado Português desde 1958, quando João XXIII foi proclamado Papa, até 1975, quando Moçambique alcançou a independência nacional. Enquanto Dom Teodósio Clemente de Gouveia e o seu sucessor Dom Custódio Alvim Pereira defendiam os interesses do regime colonial português; o Bispo da Beira, Dom Sebastião Soares de Resende, e, mais tarde, o Bispo de Nampula, Dom Manuel Vieira Pinto, em união com os Papas João XXIII e Paulo VI, defendiam o direito do povo moçambicano à autodeterminação, repudiando assim tacitamente a “Concordata” assinada pelo Papa Pio XII e pelo presidente português António de Oliveira Salazar.
Apesar desta clara divisão entre as duas Igrejas Católicas, quando Moçambique alcançou a independência em 25 de Junho de 1975, a liderança da FRELIMO ignorou o bom trabalho realizado pela “Igreja Profética” de Dom Sebastião Soares de Resende e Dom Manuel Vieira Pinto e fez um ataque generalizado à Igreja Católica, acusando-a, como um todo, de se ter aliado à opressão colonial portuguesa “para impedir a libertação do povo moçambicano”, conforme afirmou o Presidente Samora Machel num dos seus discursos.
“A Igreja Católica em Moçambique foi historicamente aliada do colonialismo e do fascismo […]. Estava profundamente envolvida na guerra de opressão colonial para impedir a libertação do povo moçambicano.”
O Dr. Hélder Martins acusa o Padre Gwenjere de ser o responsável pela revolta estudantil no Instituto Moçambicano em Dar-es-Salaam, uma revolta que, conforme o Presidente Eduardo Mondlane admitiu num dos seus discursos, começou quando o Comité Central da FRELIMO introduziu novos e radicais regulamentos estudantis em Outubro de 1966, um ano antes da chegada deste Padre na Tanzânia.
Dirigindo-se à Comissão do Instituto Moçambicano sobre “As Causas das Dificuldades no Instituto”, o Presidente Mondlane disse que os problemas no Instituto Moçambicano começaram depois da introdução de novos regulamentos estudantis pela reunião do Comité Central da FRELIMO em Outubro de 1966.
“É nossa opinião que as actuais dificuldades no Instituto Moçambicano resultam da direcção firme e definida que o nosso programa educacional tem seguido desde o final de 1966. Foi depois que os estudantes viram que o nosso propósito declarado de engajar todos os nossos formandos em todas as fases da luta de libertação estava finalmente sendo implementado, que começamos a sentir uma certa inquietação entre eles. A mais clara indicação desse mal-estar foi o aumento constante do número de estudantes séniores que desapareciam da escola.”
Importa referir que, durante o seu discurso, o Presidente Mondlane não acusou o Padre Gwenjere de ser anti-branco ou racista e de ser um agente do regime colonial português. Em vez disso, descreveu-o respeitosamente, no seu discurso anexado ao final do meu livro, como “um homem honesto” e “um religioso dedicado” que, segundo ele, trabalhou “incansavelmente” para a FRELIMO, mobilizando e enviando muitos jovens para a Tanzânia para se juntarem ao movimento da FRELIMO.
Por outro lado, não se entende como um anti-branco (também anti-português) se torna ao mesmo tempo um agente da PIDE (Polícia de Defesa do Estado Português). Respondendo a acusações no seu leito hospitalar em 1974, depois de ter sido severamente agredido por portugueses radicais na cidade da Beira, que o acusaram de ser anti-branco e responsável pelos distúrbios dos estudantes no Instituto Moçambicano, o Padre Mateus Gwenjere disse que nunca foi conselheiro para a desordem:
“Pelo contrário, fui eu que impedi a desordem, porque os estudantes tinham a vontade de partir janelas e portas […]. Eu os (aos seus líderes) aconselhei para que escrevessem um documento para OUA, com cópia para os membros do Governo (Tanzaniano). Mas os líderes (da FRELIMO), envergonhados, trouxeram pistolas para ameaçar os rapazes. Eu nunca fui conselheiro para a desordem.”
As acusações de que o Padre Gwenjere era um agente da PIDE e um racista começaram a surgir com a nova direcção da FRELIMO liderada por Samora Machel e Marcelino dos Santos. A nova direcção da FRELIMO rotulou o Padre Gwenjere de racista e de agente da PIDE, devido ao seu envolvimento directo na expulsão da Tanzânia de quatro brancos de origem portuguesa, nomeadamente, Fernando Ganhão, Jacinto Veloso, Dr. Hélder Martins bem como a sua esposa Dra. Helena Teixeira.
É falso afirmar que o Padre Gwenjere estava contra brancos que ensinavam no Instituto Moçambicano. Havia brancos de diferentes países e nacionalidades no Instituto Moçambicano, conforme o próprio Dr. Hélder Martins admitiu. O Padre Gwenjere estava contra a presença de moçambicanos brancos de origem portuguesa, depois de ter sido informado de que um deles, de nome Orlando Cristina, havia regressado a Moçambique após uma estadia de um ano na FRELIMO.
Depois de convencer a direcção da FRELIMO de que ele era um militante genuíno, Orlando Cristina, um moçambicano branco de origem portuguesa, regressou a Moçambique, tendo supostamente roubado um veículo da FRELIMO e documentos importantes. Tendo regressado a Moçambique, Orlando Cristina, juntamente com Jorge Jardim, criou “grupos especiais” que posteriormente lutaram contra a FRELIMO.
(NB: O artigo contém excertos retirados da segunda edição do livro “Mateus Pinho Gwenjere: Um Padre Revolucionario” à venda nas livrarias das cidades de Maputo e Beira. O leitor pode também ler este e outros artigos relacionados no https://umpadrevolucionario.com/language/pt/).