A MISSÃO PROFÉTICA DA IGREJA CATÓLICA E QUANDO O SILÊNCIO É INTERPRETADO COMO ACEITAÇÃO (Parte 2 de 2)

“O que mais preocupa não é o grito dos violentos, nem dos corruptos, nem dos desonestos, nem dos sem ética. O que mais preocupa é o silêncio dos bons” (Marthin Luther King)

A “missão profética” da Igreja Católica erguida por Dom Sebastião Soares de Resende e herdada por Dom Manuel Vieira Pinto, identificada pelo Padre Mateus Pinho Gwenjere, na Quarta Comissão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, em Novembro de 1967, foi a de condenar o colonialismo e a guerra colonial, bem como de defender os direitos dos povos indígenas à autodeterminação e à independência.

TERÁ A “IGREJA CATÓLICA MOÇAMBICANA” EMULADA A MISSÃO PROFÉTICA DE DOM SEBASTIÃO SOARES DE RESENDE E DE DOM MANUEL VIEIRA PINTO?

Segundo Eric Morier-Genoud, com o advento da independência, os clérigos africanos organizaram-se num sindicato chamado USAREMO (União dos Sacerdotes e Religiosos de Moçambique), com vista a defender os seus interesses. No seu documento ao Vaticano, esses missionários “moçambicanos” realçaram a necessidade de africanizar a Igreja moçambicana nomeando bispos africanos. O Vaticano cumpriu o seu desejo, nomeando bispos africanos.

Sabe-se que esses bispos escreveram ao Presidente Samora Machel queixando-se dos maus tratos dos presos em “Centros de Reeducação”.  No entanto, além desta acção, bem como para além de algumas cartas pastorais que eles escreveram, pedindo a paz, este autor não se lembra de nenhuma outra acção de destaque que foi tomada e que possa ser equiparada à “missão profética” de Dom  Sebastião Soares de Resende e Dom Manuel Vieira Pinto.

Este autor questiona o trabalho da “Igreja Católica Moçambicana” em defesa dos direitos das pessoas após a independência em Moçambique.

Importa referir que foi por sua própria iniciativa que o falecido bispo da Beira, Dom Jaime Gonçalves, manteve conversações com o líder da RENAMO, Afonso Dhlakama, que posteriormente culminaram com a assinatura do Acordo Geral de Paz de 1992 em Roma, sob a mediação da Comunidade Católica de Santo Egídio.

Dom Gonçalves escreveu no seu livro “A Paz dos Moçambicanos” que decidiu ir ter com o líder da RENAMO, Afonso Dhlakama, porque o povo moçambicano precisava de Paz. Ele pediu ao Padre José Augusto Alves de Sousa que, segundo ele, era o único que sabia da sua viagem, que caso não voltasse “daquela aventura”, explicasse à Arquidiocese da Beira a razão de ser daquela viagem. Mais adiante, o falecido Bispo Dom Jaime Gonçalves escreveu:

“Ele deveria dizer à Arquidiocese (da Beira) que eu fizera tal viagem não por imprudência ou leviandade, mas,  sim,  para promover a Paz do Povo moçambicano que muito sofria  com  uma  guerra  sem  saída”.

Embora milhares de moçambicanos tenham morrido nos chamados “Centros de Reeducação” e outros milhares tenham morrido em consequência da guerra civil, a “Igreja Católica Moçambicana” não assumiu  uma  posição  firme  e  clara, o que pode ser interpretado como uma colaboração inconsciente na manutenção da situação em que se vivia.

Poder-se-á argumentar que a “Igreja Católica Moçambicana” não o fez, durante o regime Stalinista da FRELIMO, por medo de repercussões devido à crueldade daquele regime. No entanto, mesmo após a instauração de democracia, sob o Presidente Joaquim Alberto Chissano, este autor não tem conhecimento da existência de uma  posição firme e clara que a “Igreja Católica Moçambicana” tenha assumido no sentido de encorajar o governo da FRELIMO a procurar sarar as “feridas não cicatrizadas do passado” e a embarcar numa reconciliação nacional genuína e inclusiva no seio da família mocambicana.

Sabe-se, no entanto, que a mesma Igreja Católica Moçambicana não tardou a exigir de volta as suas propriedades que haviam sido  confiscadas  durante  o regime  Stalinista  da  FRELIMO.

TRÊS TIPOS DIFERENTES DE IGREJAS NO MUNDO

Os documentos “Kairós” sul-africanos de 1985 surgiram com a existência de três tipos diferentes de igrejas no mundo:

A “Igreja do Regime” ou do “Império” é uma Igreja que utiliza erradamente conceitos teológicos para reivindicar a obediência ao Estado, como foi o caso da “Igreja Salazarista” de Dom Teodósio Clemente de Gouveia e do seu sucessor, Arcebispo Dom Custódio Alvim Pereira, em Moçambique. Foi igualmente o caso da Igreja Reformada Holandesa (Dutch Reformed Church-DRC) na África do Sul.

A “Igreja Espiritual” é aquela que não se preocupa com as pessoas, concentrando a sua atenção no bem-estar eclesiástico, assim como em si mesmo e nos seus próprios interesses.

A “Igreja Profética” é aquela que se identifica com todos ouvidos e de todo o coração com o povo sofredor, uma  Igreja  que  resiste  à  opressão e à injustiça e se identifica com os direitos das pessoas, com  a  sua liberdade   e  com   o   seu   bem-estar.

A qual das três Igrejas acima identificadas pertence a “Igreja Católica Moçambicana”?

Dados estatísticos mostrarão que, desde a independência, muitos crentes deixaram a Igreja Católica para se juntarem a diferentes religiões que  proliferam  no país. Não é tempo de a “Igreja Católica Moçambicana” adoptar uma nova linguagem de Evangelização?

QUANDO O SILÊNCIO É INTERPRETADO COMO ACEITAÇÃO

Não tomar posição e ficar calado diante da injustiça e da opressão tem sido muitas vezes interpretado como aceitação: “Quem se cala, consente”.

O Dr. Josef Pampalk, que foi missionário da África na Região Centro de Moçambique, é autor de dois livros em língua Cisena: “Nzeru mbawiri” (duas cabeças pensam melhor que uma) e “Mphyanga?”, (“É meu? Contos Sena”).

No seu livro “Mphyanga?”, a sua história “Pantsi Pano Nkhabe Udidi” (“Não existe justiça neste Mundo”) é relevante, pois representa um forte grito contra a opressão e a injustiça, contra aqueles que se aproveitam dos outros. Este autor apresenta trechos da história:

“Uma mulher grávida, andando pelo caminho, deparou com um grupo de homens a levar um caixão para o cemitério. Ela, para evitar o encontro com um morto (desde que estava grávida), tinha de desviar-se e esconder-se um pouco. Mesmo assim estabelece-se uma conversa secreta entre o bebê que ela tem na barriga e a pessoa morta no caixão, pois a criança ainda não-nascida notou algo de estranho e quis saber porquê. O morto respondeu-lhe o seguinte: ‘Quando tu nasceres e cresceres, vais descobrir que não existe justiça neste mundo (“Pantsi Pano Nkhabe Udidi”)!”

O bebê nasceu, cresceu e, tal como outros meninos da aldeia, ia à caça, à pesca e ajudava a sua mãe nas actividades agrícolas e pecuárias. Infelizmente, ele nasceu mudo: não falava. Outros aproveitaram-se desse facto, da sua incapacidade de falar: Quando fosse pescar, batiam nele e roubavam o seu anzol, juntamente com o seu pescado; quando fosse caçar, espancavam-no e roubavam a sua armadilha e a sua caça; quando fosse à machamba, roubavam a sua colheita; pois esses malfeitores sabiam, que “este garoto não tinha voz para se queixar nem para denunciá-los”.

O menino sempre voltava para casa de mãos vazias e a chorar. Preocupada demais com a possibilidade de o seu filho acabar sendo morto, a mãe convocou uma reunião de todos aldeões para se encontrar uma solução à esta situação. Na reunião, ela começou por expor os choros do filho. No entanto, enquanto ela falava, de tanta raiva que o menino tinha para denunciar pessoalmente a injustiça de que sofria, ele pediu à mãe que o deixasse falar pessoalmente. Este menino que nasceu mudo começou a falar e a denunciar as pessoas que se aproveitavam dele! 

“A própria vítima começou por expor tudo: como ele tinha sido  avisado  pelo  defunto  que  cruzou  com  a sua mãe grávida e como ele tinha sido tratado habitualmente, durante a sua vida. O garoto apontou aos adultos presentes que – na ilusão de que ele não podia falar – lhe tinham batido e despojado dos frutos do seu trabalho, no campo, na pesca e na caça […]. Começaram, ao fim desta exposição, os ilustres, um  por  um, a abrir os olhos para as injustiças em que estavam implicados.”

A moral da história, segundo o autor: o primeiro resultado negativo das injustiças está no prolongado silêncio das vítimas,  que  é  interpretado  como aceitação por aqueles que se aproveitam delas. Segundo o Dr. Pampalk, uma oportunidade para reconstruir a justiça surge quando as vítimas se manifestam e fazem ouvir as suas vozes. Continuando, ele escreveu:

“Quando não houver um esforço nacional para enfrentar injustiças, tal como a “Comissão da Verdade e Reconciliação” sul-africana fez, as mesmas injustiças continuam sendo repetidas”.

A IGREJA DE CRISTO É CHAMADA A ASSUMIR A SUA MISSÃO PROFÉTICA

No seu testemunho na Assembleia Geral das Nações Unidas em Nova Iorque, em 7 de Novembro de 1967, o  Padre Mateus Gwenjere resumiu  o  Cristianismo  da seguinte forma:

“As normas fundamentais do Cristianismo são a caridade e a justiça. A Igreja não pode só ter preocupações místicas, deve também preocupar-se com os problemas sociais. Isto é válido para Moçambique. A Igreja tem o dever de procurar e encontrar modo de equilibrar as relações humanas. Onde não existe caridade, não haverá justiça […]. Assim, a injustiça social da qual a Igreja portuguesa se revela cúmplice não é apoiada pelas directrizes vindas de Roma, mas, sim, pelo nacionalismo português. Os missionários portugueses estão a prejudicar o Cristianismo ao não cumprirem a missão que lhes  foi  confiada  pela  Igreja.”


NB: Pode ler este e outros artigos relacionados no

https://umpadrevolucionario.com/language/pt/

As referências bibliográficas e notas finais deste artigo foram omitidas. Uma referência detalhada pode ser encontrada na segunda edição do livro “Mateus Pinho Gwenjere – Um Padre Revolucionário” a partir do qual este artigo foi extraído. O livro encontra-se à venda nas livrarias das cidades de Maputo e Beira.