A MISSÃO PROFÉTICA DA IGREJA CATÓLICA E QUANDO O SILÊNCIO É INTERPRETADO COMO ACEITAÇÃO (Parte 1 de 2)

No seu depoimento na Quarta Comissão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, em Novembro de 1967, o Padre Mateus Pinho Gwenjere destacou os dois tipos de relações que existiam entre a Igreja Católica e o Estado português naquele período colonial.

Segundo este Padre, enquanto a Igreja Católica “Salazarista”, liderada pelo Cardeal-Arcebispo Dom Teodósio Clemente de Gouveia e o seu sucessor, Dom Custódio Alvim Pereira, da Arquidiocese de Lourenço Marques, defendia os interesses do regime colonial português; a Igreja Católica “Profetica”, liderada pelo Bispo da Beira Dom Sebastião Soares de Resende, defendia os direitos do povo moçambicano à autodeterminação e à independência.

Na verdade, as evidências sugerem a existência de relações mistas em Moçambique entre a Igreja Católica e o Estado Português desde 1958, quando João XXIII foi proclamado Papa, até 1975, quando Moçambique alcançou a independência nacional. Enquanto Dom Teodósio Clemente de Gouveia e o seu sucessor Dom Custódio Alvim Pereira defendiam os interesses do regime colonial português, o Bispo da Beira, Dom Sebastião Soares de Resende, e, mais tarde, o Bispo de Nampula, Dom Manuel Vieira Pinto, em união com os Papas João XXIII e Paulo VI, defendiam o direito do povo moçambicano à autodeterminação, repudiando assim tacitamente a “Concordata” assinada pelo Papa Pio XII e pelo presidente português António de Oliveira Salazar.

Apesar desta clara divisão entre as duas Igrejas Católicas, logo que Moçambique alcançou a independência em 25 de Junho de 1975, a  liderança da FRELIMO ignorou o  bom trabalho realizado pela “Igreja Profética” de Dom Sebastião Soares de Resende e Dom Manuel Vieira Pinto e fez um ataque generalizado à Igreja Católica, acusando-a, como um todo, de se ter aliado à opressão colonial portuguesa “para impedir a libertação do povo  moçambicano”,  conforme afirmou o Presidente Samora Machel  num  dos  seus  discursos:

“A Igreja Católica em Moçambique foi historicamente aliada do colonialismo e do fascismo […]. Estava profundamente envolvida na guerra de opressão colonial para impedir a libertação do povo moçambicano.”

Tendo acusado a Igreja Católica de colaborar com a opressão colonial portuguesa em Moçambique, o governo da FRELIMO iniciou uma onda de perseguições contra ela, nacionalizando as suas missões, escolas, hospitais e outros bens, restringindo a sua liberdade religiosa, bem como detendo e expulsando alguns dos seus missionários.

Os missionários católicos foram forçados a abandonar as suas missões e a viver nas cidades. Os mesmos eram obrigados a solicitar uma “guia de marcha” para visitar as suas comunidades longe das suas áreas de residência.

Escrevendo sobre as perseguições contra a Igreja Católica na Região Centro de Moçambique, a Irmã Maria Helena Soares Tomás, autora do livro “Irmãs Franciscanas da Mãe do Divino Pastor em Moçambique”, acusou o governo da FRELIMO de congelar as contas bancárias das igrejas, de fechar igrejas e de transformar algumas delas em armazéns e de nacionalizar seminários e missões católicas. Ela ainda acusou a FRELIMO de nacionalizar a única viatura que a Missão de Gorongosa possuia.

Mais adiante, a Irmã Helena escreveu que ela foi presa e detida, juntamente com o Padre Fernando Pérez Prieto, por ter saído da Cidade da Beira, onde estava obrigatoriamente estacionada, para a Gorongosa para prestar assistência às comunidades. Ainda segundo esta Irmã, quando o Bispo da Beira Dom Jaime Gonçalves foi à Gorongosa para intervir, ele também foi detido, juntamente com o seu motorista.

Por sua vez, o Padre Piero Gheddo forneceu uma longa descrição das perseguições contra a Igreja Católica após a independência em Moçambique. No seu livro “A New Church is Born under Persecution” (Uma Nova Igreja Nasce Sob Perseguição”), o Padre Gheddo acusou a FRELIMO de usar métodos violentos para impor as suas políticas ateístas. Segundo este Padre, quando em 3 de Dezembro de 1978, os bispos católicos escreveram uma carta pastoral reclamando do aumento das “restrições à prática da religião” no país, eles foram convocados para  receber  uma  notificação  com  mais  restrições.

Algum tempo depois, no discurso de 1 de Maio de 1979, o Presidente Samora Machel lançou um ataque violento contra os bispos africanos que, segundo ele, estiveram ao lado do regime colonial português  (citação traduzida do inglês):

“Olhe para esses bispos (africanos) […]. Ontem eles estiveram lado a lado com os colonialistas portugueses […] e hoje eles dizem falar em nome do povo! Mas que povo? […]. O povo está do nosso lado.”

Até mesmo o Padre Césare Bertulli (autor de “A Cruz e a Espada em Moçambique”), que tudo fez para manter relações amistosas com o Presidente Samora Machel e com a FRELIMO, pouco antes e depois da independência de Moçambique, não foi poupado. Machel disse o seguinte quando o governo da FRELIMO fechou as fronteiras aos missionários um mês após a independência:

“De agora em diante, nem Bertulli nem quaisquer outros missionários são necessários na nova nação”.

Mesmo assim, o Padre Bertulli, continuou a corresponder-se com Presidente Samora Machel, mostrando-se regozijado com as vitórias alcançadas pelo movimento da FRELIMO e pronto para servir a nova nação. Um ano depois, em Março de 1976, Bertulli morreu, depois de ter sido atropelado por um carro ao atravessar uma rua em Roma, Italia, sua terra natal. Bertulli morreu antes que pudesse testemunhar alguma mudança nas políticas religiosas do governo da FRELIMO.

Seria errôneo afirmar que apenas a Igreja Católica sofreu perseguições após a independência em Moçambique. Pessoas pertencentes a outras denominações religiosas, como as Testemunhas de Jeová e os Muçulmanos, conheceram a ira da FRELIMO, que não via com bons olhos todas as religiões, conforme evidenciado na seguinte declaração do Presidente Machel (citação traduzida do inglês):

“A religião é uma superstição que finge que o homem é dependente de um ser sobrenatural que não existe. Não só (este ser) é impotente para resolver os problemas reais das pessoas, mas também tira a autoconfiança do homem e impede que ele controle o seu próprio destino.”

A MISSÃO PROFÉTICA DE DOM SEBASTIÃO SOARES DE RESENDE E DOM MANUEL VIEIRA PINTO

Dois bispos: Dom Sebastião Soares de Resende, bispo da diocese da Beira, e mais tarde, Dom Manuel Vieira Pinto, bispo da diocese de Nampula, foram pessoas excepcionais a todos os níveis. Esses dois bispos colocaram o seu catolicismo bem acima do seu nacionalismo português, influenciando positivamente muitos missionários no Centro e Norte de Moçambique e mantendo viva a Igreja profética que o Padre Mateu Gwenjere destacou nas Nações Unidas em Nova Iorque, em 7 de Novembro de 1967.

Bispo da Beira Dom Sebastião Soares de Resende conversando com paroquianos na Missão de Murraça em 1963, com o Padre Yvo Chouvinard ao lado e Padre Jean Ribeaud atrás. Fonte: Dr. Josef Pampalk

Os dois prelados foram anticolonialistas ferrenhos e promotores da Igreja Católica Profética em Moçambique. Em união com os Papas João XXIII e Paulo VI, esses bispos lutaram a favor da justiça social e dos direitos do povo moçambicano à autogovernação e à independência.

Dirigindo-se às Nações Unidas em Nova Iorque, o Padre Gwenjere disse que, embora o regime colonial português se concentrasse na sua “missão civilizadora”, esta política não era aplicada pelo Bispo da Beira. Para ilustrar o seu caso, ele referiu-se à visita do Governador de Manica e Sofala, Sousa Teles, à sua paróquia de Murraça em 1967.

O Padre Gwenjere disse que quando o Governador visitou a sua paróquia encontrou um grupo de 117 nativos a receber aulas de catecismo na sua língua local, Cisena, em preparação para o seu baptismo. O Governador ficou chocado ao ver a catequese sendo ensinada aos nativos e estes orando na sua língua local em vez da língua nacional, Português.

O Padre Walther van der Hout, que substituiu o Padre Charles Pollet em 1966, como o Padre Superior da Missão de Murraça, foi acusado pela PIDE de ser pior do que o seu antecessor. Este Padre decidiu que a missa na Missão de Murraça seria celebrada totalmente em língua vernacular, Cisena, em vez de português, “com o bater dos batuques e das palmas”, para o aborrecimento da comunidade europeia local que considerava esta forma de celebrar a missa como sendo “menos solene e menos digna”.

Por seu turno, Dom Manuel Vieira Pinto que foi convidado pelo governo da FRELIMO a regressar a Moçambique, após a independência, não se deixava intimidar. Quando o Presidente Samora Machel criticou a Igreja por pregar a existência de um ser sobrenatural que, para ele, não existia, Dom Manuel Vieira Pinto retorquiu, dizendo que não estava correcto confundir a crítica de religião com a negação da existência de Deus ou com a humilhação dos crentes:

“Uma coisa é combater o obscurantismo, a superstição, os preconceitos, outra coisa é combater a religião. Confundir, sem mais, obscurantismo e religião é cometer um grave erro. Infelizmente não falta quem o faça, provocando assim na consciência do Povo […] novas formas de obscurantismo. Também não será correcto confundir a crítica à religião com a negação pura e simples de Deus, ou com a humilhação do homem crente […]. Em Marx, como no Lenin, o que é primeiro não é o ateísmo, mas o humanismo, o que é fundamental não é a alienação religiosa, mas a alienação econômico-social.” (Da Silva 2017:116).

Dom Manuel Vieira Pinto denunciou publicamente as atrocidades da guerra sangrenta e fratricida entre o Governo da FRELIMO e a RENAMO e, em Maio de 1984, instou o Presidente Machel a pôr termo à guerra, propondo negociações políticas com a RENAMO.


NB: Pode ler este e outros artigos relacionados no

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As referências bibliográficas e notas finais deste artigo foram omitidas. Uma referência detalhada pode ser encontrada na segunda edição do livro “Mateus Pinho Gwenjere – Um Padre Revolucionário” a partir do qual este artigo foi extraído. O livro encontra-se à venda nas livrarias das cidades de Maputo e Beira.