Em Novembro de 1967, dois meses após a chegada do Padre Mateus Pinho Gwenjere a Dar-es-Salaam, na Tanzânia, o Presidente Eduardo Mondlane enviou-o a Nova Iorque, Estados Unidos da América, para testemunhar contra Portugal na Quarta Comissão da Assembleia Geral das Nações Unidas.
No seu depoimento, o Padre Gwenjere denunciou a Igreja Católica “Salazarista” e as injustiças e a opressão do regime colonial português. O depoimento foi seguido por várias mensagens de indignação, condenação e raiva, particularmente por parte dos delegados africanos. Indignado com o testemunho, George Coleride-Taylor, da Serra Leoa, disse:
“Ouvimos descrições horripilantes que nos fazem gelar o sangue nas veias, das atrocidades dos portugueses, do terror escandaloso que pode ser literalmente descrito como a violentação da África por Portugal”.
O Padre Gwenjere correspondeu assim às expectativas do Presidente Mondlane, ao reiterar a sua crença na eficácia da diplomacia para resolver o problema da independência de Moçambique. Assim, tudo indicava que, ao regressar de Nova Iorque, ele e o Presidente Mondlane estabeleceriam uma forte dupla para inverter o equilíbrio de forças a favor da tendência marxista-maoista no movimento. No entanto, a rápida amizade que os dois homens desenvolveram, antes da partida do Padre para Nova Yorque, foi sol de pouca dura.
DESENTENDIMENTO COM PRESIDENTE MONDLANE
O Padre Gwenjere deslocou-se aos Estados Unidos da América acompanhado do Vice-Presidente Uria Simango. Durante o período em que viajaram juntos, Simango aproveitou a oportunidade para dar a conhecer ao Padre os problemas internos que o movimento da FRELIMO atravessava na altura. O Padre que, em Moçambique, trabalhou incansavelmente para a FRELIMO, ficou totalmente arrasado com a informação que ouviu sobre a situação conturbada no movimento. No seu regresso de Nova Iorque, o Presidente Mondlane observou que o Padre Gwenjere já não era mais a mesma pessoa com a qual havia iniciado uma amizade antes de partir para os Estados Unidos.
Entrevistado no seu leito hospitalar, depois de ter sido brutalmente agredido por um grupo de radicais portugueses na Cidade da Beira em 1974, que o acusaram de ser anti-branco, o Padre Gwenjere disse que vários líderes nacionalistas exigiam reformas na FRELIMO, mas sem sucesso. Quando ele chegou à Tanzânia, esses líderes pediram-lhe que os ajudasse a concretizar essa tarefa.
O Padre Gwenjere disse que o Presidente Mondlane recusava-se terminantemente a realizar reformas, obrigando-o a pedir a intervenção do Governo da Tanzânia e do Comité de Libertação da OUA. O Padre começou a ser recebido em audiência pelos líderes do Governo da Tanzânia, nomeadamente pelo Segundo Vice-Presidente da Tanzânia, Rashidi Kawawa, e pelo Ministro de Estado da Tanzânia, Lawi Sijaona, com quem trabalhou para trazer reformas ao movimento da FRELIMO.
Com a sua postura ousada, num momento em que os militantes da FRELIMO temiam a liderança militar do movimento que recorria à força das armas para resolver as diferenças internas e impor a ordem, o Padre Gwenjere começou a ganhar respeito e apoio de vários sectores, principalmente de elementos descontentes no movimento, de estudantes, de membros do Conselho de Anciãos (Baraza-la-Wazee), bem como de membros do Governo da Tanzânia e da imprensa local e estrangeira.
O Presidente Mondlane ficou chocado com o rumo dos acontencimentos e com o que ele viu como a intenção do Padre Gwenjere de afastá-lo do poder, mobilizando as bases da FRELIMO contra ele. Naturalmente, isso levou a uma ruptura entre os dois homens.
A RUPTURA TORNOU-SE EVIDENTE NA FESTA DO FINAL DE ANO
A ruptura tornou-se evidente na festa do final de ano, em Dezembro de 1967, em Dar -es-Salaam, Tanzânia. No seu discurso anual, o Presidente Mondlane disse aos militantes da FRELIMO que “a luta contra a dominação portuguesa seria longa e demorada”. Na ocasião, o Padre Gwenjere opôs-se aos pronunciamentos de uma “guerra prolongada” do Presidente Mondlane. O sacerdote argumentou que uma “guerra prolongada” só traria mais sofrimento aos moçambicanos dentro do país.
O incidente do discurso do fim de ano do Presidente Mondlane é melhor recontado pelo correspondente de “Los Angeles Times” Stanley Meisler. Segundo Meisler, o Presidente Mondlane disse-lhe que ele cometeu um “grande erro ao convidar o Padre Gwenjere para a sede da FRELIMO na capital tanzaniana, Dar-es-Salaam”.
Meisler escreveu que, durante a festa do final de ano em Dar-es-Salaam, o Presidente Mondlane disse aos membros do movimento que eles deveriam “esperar que a guerra durasse muitos anos”. Ele também lhes disse que “a FRELIMO estava a lutar contra o colonialismo português e não contra a cultura portuguesa ou o povo português”. Segundo Meisler, quando ele terminou o seu discurso, Mondlane lembrou: “O Padre Gwenjere foi até a ele e disse: ‘O Senhor é um traidor’”.
Num artigo intitulado “Mozambique Rebels Disagree” (“Rebeldes Moçambicanos Discordam”), publicado no “Washington Post” de 30 de Junho de 1968, Meisler escreveu que as dissensões nas fileiras da FRELIMO estavam a dificultar as acções deste movimento contra Portugal. Meisler descreveu o Padre Gwenjere como “um jovem padre progressista (Meu comentário: vejam que este padre que a FRELIMO apelida de contrarrevolucionário é descrito como socialista) que estava a colocar em cheque a chefia” do Presidente Mondlane:
“Mondlane difere muito dos homens que lidera. […] é culto, educado e muito ocidentalizado […]. Por outro lado, o Padre Gwenjere, que acaba de sair de Moçambique, é jovem, militante, impaciente e evidentemente anti-branco […]. Para o Padre, Mondlane anda muito devagar e a sua linguagem é muito suave para o seu gosto […]. Embora não seja membro do Comité Central da FRELIMO, o Padre ganhou influência com a sua linguagem persuasiva […]. O Governo da Tanzania cedeu a uma das suas principais reivindicações, expulsando os quatro professores brancos (portugueses) do país.”
AS CINCO REFORMAS QUE O PADRE GWENJERE EXIGIA
O Padre Gwenjere exigia reformas para colocar o movimento num caminho visto por ele e por outros líderes nacionalistas, nomeadamente Uria Simango, Lázaro Nkavandame e Raul Casal Ribeiro, como o melhor para a Revolução Moçambicana. Esses líderes nacionalistas estavam contra os maus-tratos e execuções sumárias de combatentes, bem como contra a política de “guerra prolongada”. Por outro lado, exigiam reformas na concentração do poder político-militar e de segurança em torno do grupo de “Sulistas” bem como reformas no recrutamento descontrolado de brancos de origem portuguesa como docentes no Instituto Moçambicano. Acima de tudo, eles exigiam a realização do Segundo Congresso. Segundo os estatutos da FRELIMO, os congressos deveriam ser realizados periodicamente no movimento. Assim, após o Primeiro Congresso da FRELIMO realizado em Setembro de 1962, o Segundo Congresso estava previsto para 1965.
Discursando no Terceiro Congresso da FRELIMO em Maputo em 1977, o Presidente Machel admitiu que o Padre Gwenjere, que gozava de grande apoio e respeito das autoridades tanzanianas e estrangeiras, impôs a realização do Segundo Congresso:
“As forças reaccionárias, gozando de alianças exteriores, conseguiram impor a direcção da FRELIMO a realização do Segundo Congresso antes da data prevista”.
DONA JANET MONDLANE: SOBRE O DESENTENDIMENTO COM O PADRE GWENJERE
Uma carta de quatro páginas que a Senhora Dona Janet Mondlane escreveu aos seus pais e publicada no livro “O Meu Coração Está nas Mãos de um Negro” revela o nível de desentendimento que o Padre Gwenjere tinha com Presidente Mondlane:
“[…] O Padre Gwenjere atacou fortemente no campo político […] circulavam, nos gabinetes do governo (tanzaniano) e nas embaixadas e, sabe-se lá, onde mais, documentos insultuosos, escandalosos […]. Depois, nos princípios de Maio, […] o Padre teve uma reunião com aqueles loucos (sic – uma referência aos membros do Baraza-la-Wazee, Conselho de Anciãos) […]. Agitou-os até uma espécie de frenesim e foram ao escritório da FRELIMO com paus, facas e dentes de elefante […]. (O grupo) arrombou as portas e tentou bater em toda a gente em que pudesse […]. O Governo (tanzaniano) arbitrariamente expulsou os nossos professores e médicos portugueses […]. Como explicar os últimos seis meses em que as nossas vidas têm sido um inferno?”
No fim da carta a autora do livro, Nadja Manghezi, escreveu que em face dessa situação, o Dr. Mondlane teria perguntado a sua esposa, a Senhora Dona Janet Mondlane, se não deveriam “desistir e voltar para casa, significando os Estados Unidos”. Segundo a autora do livro, a Dona Janet Mondlane rejeitou a proposta do marido.
NB: Pode ler este e outros artigos relacionados no https://umpadrevolucionario.com
As referências bibliográficas e notas finais deste artigo foram omitidas. Uma referência detalhada pode ser encontrada na segunda edição do livro “Mateus Pinho Gwenjere – Um Padre Revolucionário” a partir do qual este artigo foi extraído. O livro encontra-se à venda nas livrarias das cidades de Maputo e Beira.