UM APELO À CONSCIÊNCIA

O Desejo Do Padre Gwenjere Se Estivesse Vivo Hoje:

Se o Padre Mateus Gwenjere estivesse vivo hoje, continuaria a lutar, desta vez, pelo estabelecimento da paz, reconciliação e boa governação em Moçambique.

Quando Moçambique alcançou a independência em 1975, esperava-se que o povo moçambicano vivesse em paz. Não foi, no entanto, o que aconteceu. Um ano após a independência, Moçambique foi assolado por uma sangrenta guerra fratricida que durou 16 anos, semeando luto e dor devido, em grande parte, à recusa e a intransigência do governo da Frelimo em reconhecer a reconciliação como um elemento fundamental na construção de uma paz justa e duradoura.

Em 1986, Joaquim Alberto Chissano tomou posse como presidente da República, depois da morte do Presidente Samora Machel. Reconhecendo a importância de restabelecer a paz no país, ele assinou o Acordo Geral de Paz com o Presidente Afonso Dhlakama da RENAMO em 1992. Ao mesmo tempo, contra a vontade da ala radical do movimento da FRELIMO, concedeu aministia aos chamados “contra-revolucionários” da FRELIMO  que  não  podiam  regressar  a  Moçambique  sem enfrentar  prisão, detenção  ou  morte. 

No entanto, depois do Presidente Chissano ter deixado o poder, a guerra entre o governo do Partido da Frelimo e o movimento da RENAMO recomeçou em 2013, semeando, novamente, luto e dor. Esta guerra terminou em 2014, com a assinatura de um novo Acordo de Paz entre o Presidente Armando Guebuza e o Presidente Afonso Dhlakama. 

Um ano depois, em 2015, a guerra entre a RENAMO e o governo da Frelimo foi retomada, semeando, novamente, luto e dor. Enquanto um Acordo de Paz estava sendo alcançado com a RENAMO em 2017, outra guerra sangrenta começava na província de Cabo Delgado. Essa guerra continua até a presente data, semeando, novamente luto e dor e forçando um grande número de cidadãos a se deslocarem das suas zonas de origem.

Em 6 de Agosto de 2019, o Presidente Filipe Jacinto Nyusi assinou o “Acordo de Paz Definitiva” com o novo Presidente da RENAMO Ossufo Momade. No entanto, logo após a assinatura do acordo, surgiu outra RENAMO armada, liderada pelo General Mariano Nhongo, que retomou a guerra, causando luto e dor.

Conforme referido anteriormente, além da guerra travada no centro de Moçambique, as forças do Governo enfrentam outra guerra no Norte de Moçambique, travada por um grupo de insurgentes intransigentes, supostamente jihadistas, mergulhando as forças do governo numa guerra de atrição, difícil de vencer militarmente.

É Fundamental Investigar Os Porquês De Todas Essas Guerras

É fundamental investigar os porquês de todas essas guerras. Este país encontra-se em guerras fratricidas infindáveis por quase meio século, isto é, desde que alcançou a independência em 1975. Enquanto isso, todos outros países, vizinhos de Moçambique, vivem em paz. Não existe algo de errado com o povo moçambicano ou com a sua liderança?

O governo da Frelimo culpa aos outros por todas essas guerras. No entanto, para pessoas familiarizadas com a história de Moçambique, a interpretação é clara: um grupo de moçambicanos procura, a todo custo, monopolizar o poder político e económico, desrespeitando os resultados eleitorais que são a voz do povo. Enquanto isso, outros grupos de moçambicanos, sentindo-se excluídos e alienados, conspiram e organizam rebeliões para igualmente assumirem o poder.

Existe Uma Forma Correcta E Uma Forma Errada De Responder Aos Problemas Num País

Existe uma forma correcta e uma forma errada de responder aos problemas num país, o que muitas vezes determina se um país vive em paz ou anda em guerras,  como  o  nosso. Com guerras no Norte e centro de Moçambique, o mais correcto não seria lidar com as principais causas dos conflitos, a fim de impedir, logo pela raiz, que tais conflitos voltem a ocorrer?  Com guerras fratricidas infindáveis, desde que o país alcançou a independência em 1975, o mais correcto não seria adoptar uma política de governação mais adequada?

O mais correcto não seria procurar sarar as “feridas causadas durante tantos anos de discórdias”? Citando o Papa Francisco, na sua homilia, durante a missa campal no Estádio do Zimpeto, no último dia da sua visita a Moçambique, “não se pode falar de reconciliação quando ainda estão vivas as feridas causadas durante tantos anos de discórdias”.

No entanto, enquanto a guerra continua a ceifar vidas humanas, mantendo o povo moçambicano no sofrimento, na angústia, e na miséria, o governo da Frelimo prefere apostar numa vitória total – vitória total esta que, até a presente data, ainda não conseguiu obter, desde que o país alcançou a independência há meio século.

Acordos Destinados A Enganar

Em todos os acordos de paz alcançados até a presente data, o governo da Frelimo prefere empenhar-se num jogo de astúcia política destinado a enganar para impor a sua vontade. Mas, como bem diz o ditado, “ninguém pode enganar todas as pessoas o tempo todo”, com essa táctica, o governo da Frelimo consegue apenas apegar-se a uma paz momentânea.

A história deixa bem claro que um governo que prioriza a intolerância política; um governo que não beneficia a maioria da sua população para que possa permanecer no poder com o seu consentimento; este governo apenas incentiva a rebelião e só pode permanecer no poder pela força das armas.

Em suma, a menos que o governo da Frelimo mude radicalmente de direcção, procurando sarar as “feridas vivas causadas durante tantos anos de discórdias”, conforme bem disse o Papa Francisco; a menos que o governo da Frelimo enverede por uma reconciliação nacional verdadeiramente genuína e inclusiva, para conquistar os corações e as mentes do povo moçambicano, o país continuará a enfrentar instabilidade política, independentemente da ajuda militar que possa obter do exterior.

O povo moçambicano que já sofreu demais precisa de paz.  Para que este povo martirizado não se canse de lutar, é necessário que o governo da Frelimo lhes proporcione uma causa justa comum pela qual vale a pena combater ao último suspiro e derramar o sangue à  última  gota. 

O Caminho Para A Paz

Em Moçambique, as “feridas vivas” ou as “feridas não cicatrizadas do passado”, destacadas pelo Papa Francisco e pelo padre sul-africano Michael Lapsley, respectivamente, referem-se a conflitos não resolvidos do passado que culminaram na detenção e execução, sem julgamento, de vários líderes nacionalistas, pouco depois da independência de Moçambique.

Referem-se igualmente aos abusos cometidos nos chamados “Centros de Reeducação”, onde muitos moçambicanos foram enterrados e queimados vivos. Também se referem às várias violações dos direitos humanos cometidas, dia após dia, durante as guerras fratricidas, desde 1976 até a presente data.

Um processo de paz para uma reconciliação verdadeiramente genuína no seio da família moçambicana deve ser inclusivo. O mesmo deve começar de baixo para cima: com o reconhecimento de que existe a necessidade de sarar as “feridas não cicatrizadas do passado”.

Um processo de paz para uma reconciliação verdadeiramente genuína em Moçambique deve começar com um pedido de desculpas das forças beligerantes, principalmente o governo da Frelimo e a RENAMO, a todas as vítimas e familiares das vítimas de guerras fratricidas.

Do lado do governo da Frelimo, este proceso deve, no mínimo, começar com o reconhecimento oficial de que embora os líderes nacionalistas mortos – nomeadamente Padre Mateus Pinho Gwenjere, Reverendo Uria Simango, Paulo Gumane, Adelino Gwambe, Lázaro Nkavandame, Dra. Joana Simeão, Raul Casal Ribeiro e muitos outros – tivessem pensamentos diferentes da então direcção da FRELIMO, quanto ao melhor caminho a seguir para a Revolução Moçambicana, eles foram combatentes genuínos da luta armada de libertação nacional, devendo, portanto, merecer, não o vilipêndio, mas sim, o respeito e o amor do povo moçambicano.   

Modelos Para Sociedades Que Desejam Viver Em Paz

Muitos países africanos, incluindo Serra Leoa, Libéria, Gana, Ruanda, África do Sul e Angola, estiveram envolvidos em processos de reconciliação. Segundo o Padre sul-africano Michael Lapsley, a TRC (Comissão da Verdade e Reconciliação) “deu ao povo sul-africano uma enorme vantagem na cura nacional”.

Angola, um país irmão, é um modelo para sociedades que verdadeiramente desejam viver em paz.  Recentemente, um gesto nobre e corajoso veio do Presidente Angolano João Lourenço. Após criar a Comissão de Reconciliação em Memória às Vítimas dos Conflitos Políticos (CIVICOP) em Abril de 2019, este ano, numa comunicação televisiva à nação angolana na véspera da data do alegado golpe “Nitista” de 27 de Maio de 1977, João Lourenço pediu desculpas pelas execuções sumárias e excessos ocorridos após o alegado golpe:

“[…] viemos junto das vítimas dos conflitos e dos angolanos em geral pedir humildemente, em nome do Estado angolano, as nossas desculpas públicas e o perdão pelo grande mal que foram as execuções sumárias naquela altura e naquelas circunstâncias […]”. Este pedido público de desculpas e de perdão […] reflete o nosso sincero arrependimento […]. Serão ainda entregues às respectivas famílias as ossadas para que o maior número possível de famílias atingidas possa realizar um funeral condigno dos seus ente-queridos […].”

Mais adiante, o presidente angolano disse que, depois de mais de quatro décadas, o estado angolano decidiu “quebrar o silêncio” para evitar que tragédias identícas se repitam no  futuro.

Note-se que, em nome do Estado angolano, o Presidente João Lourenço pediu desculpas e perdão, apesar desses excessos e execuções sumárias não terem ocorrido durante a sua governação. E como se não bastasse, ao concluir a sua comunicação, João Lourenço proferiu as seguintes palavras que merecem uma profunda reflexão: “Com este gesto, as almas das vítimas de conflitos políticos terão a paz necessária  para  o  repouso  eterno.”

É um facto documentado que é necessário apaziguar as almas de pessoas inocentes mortas de forma injusta, violenta e cruel, para que possam verdadeiramente descansar em paz. Para que haja uma verdadeira paz e reconciliação genuína em Moçambique, é necessário apaziguar as almas das vítimas dos conflitos armados ocorridos desde a independência. Devido à forma injusta, violenta e cruel como encontraram a morte, as almas de algumas dessas pessoas, com desejo de vingança, continuam a vaguear pela terra em busca de vingança pelo mal que sofreram, causando, desta forma, danos à nação moçambicana.

Meio século, desde que Moçambique se tornou independente em 1975, é um período bastante longo para um país continuar em guerras infrutíferas, no sofrimento, na miséria; para não falar do desperdício de vidas humanas e da destruição de  infraestruturas.

Para o bem-estar do martirizado povo moçambicano, este é um apelo ao governo do Partido da Frelimo para que coloque a mão na consciência, para que, no mínimo, reflicta se as guerras que os grupos armados beligerantes travam contra o seu governo desde a independência, semeando luto e dor no seio da família moçambicana, são da exclusiva responsabilidade desses grupos armados ou são também da sua responsabilidade.

Enquanto a necessidade de sarar as “feridas não cicatrizadas do passado” e de enveredar por uma reconciliação nacional, verdadeiramente genuína e inclusiva, não for devidamente reconhecida e respeitada, não pode haver paz verdadeira e duradoura, independentemente da ajuda militar que o país possa obter do exterior. “A história não se apaga”, conforme bem disse o Presidente Angolano João Lourenço.

Não se foge à verdade. A “nação precisa de ter uma noção clara do que aconteceu no passado”, conforme bem escreveu o padre sul-africano Michael Lapsley. Escrever a história de forma enganosa e não reconhecer os erros e os abusos do passado é um convite à repetição da violência.

Note-se que existe uma forma correcta e uma forma errada de responder aos problemas num país, o que muitas vezes determina se um país vive em paz, como estão todos os países vizinhos, ou anda em guerras fratricidas e infrutíferas, como o nosso país.

(Extractos do Capítulo 28 da segunda edição do livro “Mateus Pinho Gwenjere: Um Padre Revolucionário”, edição revista e ampliada, com 28 capítulos e 576 páginas. O livro já se encontra à venda em algumas livrarias da cidade de Maputo).