ATÉ QUE PONTO A IGREJA CATÓLICA COLABOROU COM O REGIME COLONIAL PORTUGUÊS NA SUA “MISSÃO CIVILIZADORA”?

“Um homem sentou-se em cima do peito do Padre Gonçalo da Silveira, quatro deles o levantaram pelos braços e pernas, enquanto outros dois amarravam uma corda em volta do seu pescoço e o estrangularam. Depois, o arrastaram e deitaram o seu cadáver no rio Musengezi onde foi aparentemente devorado por crocodilos.”

A prova de fogo para compreender até que ponto a Igreja Católica colaborou com o regime colonial português na sua “missão civilizadora” foi dada pelo então Bispo de Nampula, Dom Manuel Vieira Pinto:

Colaborar activamente com o regime colonial português; concordar em propagar a cultura portuguesa; pregar um evangelho de obediência dócil às autoridades portuguesas; permitir-se ser usado pelo regime colonial; e manter em silêncio os crimes e as injustiças do colonialismo que violavam os direitos fundamentais do povo moçambicano.

A Igreja Católica foi a primeira denominação cristã em Moçambique. A sua história começa com Vasco da Gama, o famoso explorador marítimo português, que chegou à costa moçambicana em 1498 enquanto navegava para a Índia.

Os missionários católicos celebraram a sua primeira missa na Ilha de São Jorge, próximo da Ilha de Moçambique, em 11 de Março de 1498. Em 1505, a primeira documentada Igreja Católica foi construída num movimentado posto comercial chamado Sofala. O seu primeiro vigário foi o Padre Bartolomeu Fernandes que baptizou o primeiro grupo de nativos em 1506.

No final de Agosto de 1541, o Padre Francisco Xavier, que foi um dos primeiros missionários jesuítas responsáveis pelo estabelecimento do Cristianismo na Índia, chegou à Ilha de Moçambique a caminho de Goa, na Índia. Ele estava acompanhado pelo Padre Micer Paulino Camerino e o Irmão Francisco Mancilhas.

A EXPEDIÇÃO MISSIONÁRIA JESUÍTA CHEGA A MOÇAMBIQUE

O Vice-Rei da Índia, Constantino de Bragança, encorajou um Padre Jesuíta português, de nome Gonçalo da Silveira, que era o Superior Provincial da Índia, a ir a Moçambique, depois de relatos da existência de ouro no Império de Mwene-Mutapa (Mwene significa governante de Mutapa) de Shonas, um reino medieval localizado próximo de Harare, Zimbábuè, entre os rios Zambeze e Limpopo, também conhecido como “Great Zimbabwe”. Os Portugueses acreditavam que o Império de Mutapa era o lugar onde as proverbiais minas de ouro do Rei Salomão na Bíblia tinham sido encontradas.

Em Fevereiro de 1560, a expedição missionária do Padre Gonçalo da Silveira chegou à costa de Moçambique. Acompanhado pelo Padre André Fernandes e pelo Irmão André da Costa, seguiram para Inhambane onde, depois de sete semanas, converteram à fé cristã o rei, a rainha, e aproximadamente 400 súbditos.

Encorajados pelo bom êxito da sua Missão em Inhambane, o Padre Gonçalo da Silveira deixou os seus confrades lá e dirigiu-se para o Reino de Mutapa em Junho de 1560, seguindo o curso do rio Zambeze. Enquanto estava na vila de Sena e antes de entrar na corte real de Mutapa, o Padre pediu permissão para ser recebido pelo então rei, chamado Chisamharu Negomo Mupunzagutu.

O Padre Da Silveira chegou à corte real de Mutapa em 26 de Dezembro de 1560 e pouco depois começou o seu trabalho destinado a converter a família real ao Cristianismo. O Padre Da Silveira ensinou ao Rei e à sua mãe os primeiros rudimentos do catecismo, depois do qual os baptizou com os nomes de Dom Sebastião, nome do rei de Portugal na época, e Dona Maria, nome da Virgem Maria. O Padre também conseguiu converter e baptizar 300 súbditos do rei.

Os conselheiros árabes do Rei de Mutapa não estavam nada satisfeitos com o recém-desenvolvido relacionamento, pois, segundo eles, a intenção dos portugueses era monopolizar o comércio. Eles lembraram ao Rei de Mutapa que foi pela mesma artimanha que os portugueses foram autorizados a entrar e a ocupar violentamente o Reino de Sofala que lhe prestava vassalagem. Eles disseram ao Rei que Da Silveira era um espião enviado pelos portugueses para preparar o caminho para assumirem o Reino de Mutapa:

“A água que ele põe na cabeça das pessoas e o sal que coloca em suas bocas são poderosos feitiços para conquistar o povo do Rei Mutapa e, a partir daí, usurpar o seu Reino. Cuidado, Vossa Majestade, os portugueses estão conspirando contra o Senhor.”

Meio crédulo, o recém-convertido Rei “Sebastião” contou ao Padre Da Silveira o que ele ouvira sobre ele dos seus conselheiros. Ao fazer isso, ele esperava que o Padre fugisse para não ser forçado a matá-lo. António Caiado, o intérprete português que era de confiança do Rei Mutapa e que conhecia o seu modus operandi, implorou ao Padre que deixasse o reino imediatamente. Entretanto, o Padre Da Silveira não arredou pé. Ele disse que perdoava o rei e a sua mãe porque foram enganados.

“Estou mais preparado para morrer do que os muçulmanos estão para me matar”.

Em 16 de Março de 1561, Da Silveira foi estrangulado até à morte dentro da sua cabana enquanto dormia. Os dois serventes de Caiado que ficavam com o Padre explicaram como ele foi morto.

“O Padre movimentava-se de um lado para o outro segurando um crucifixo em suas mãos e olhando para o céu enquanto orava”.

Exausto, decidiu ir dormir. Logo depois, sete homens correram para dentro da sua cabana e imobilizaram-no:

“Um homem sentou-se em cima do seu peito, quatro deles o levantaram pelos braços e pernas, enquanto outros dois amarravam uma corda em volta do seu pescoço e o estrangularam. Depois, o arrastaram e deitaram o seu cadáver no rio Musengezi onde foi aparentemente devorado por crocodilos.”

Muscalu apresenta outro motivo pelo qual o Rei Mutapa se revoltou contra o Padre Gonçalo da Silveira: antes da chegada de Da Silveira ao Reino de Mutapa e do baptismo do rei e da sua família, assim como dos seus súbditos, as pessoas lá, incluindo os muçulmanos, viviam em harmonia praticando as suas diferentes religiões e rituais culturais.

A adopção do catolicismo, como proposto pelo missionário, implicava que o rei teria que expulsar os muçulmanos e acabar com os cultos Shona, inclusive deixar de acreditar na intervenção dos ancestrais, o que representava uma ameaça à unidade do reino.

Não se duvida que o Padre Gonçalo da Silveira pregasse contra a veneração dos ancestrais, pois o seu confrade, Padre André Fernandes, que permaneceu em Inhambane, muitas vezes interrompia os rituais religiosos dos indígenas daquela região. Um dia, quando os indígenas realizavam os seus sacrifícios aos ancestrais, o Padre André foi ao local e teve a ousadia de pisar com os seus pés todos os objectos de sacrifício.

Em 1568, os portugueses decidiram vingar o assassinato do Padre Da Silveira. Eles enviaram uma expedição de 1.000 homens de Goa, sob o comando de Francisco Barreto, soldado experiente e ex-governador do Estado da Índia. O exército reagrupado era composto em grande parte por veteranos das guerras marroquinas. Além das tropas mencionadas, mais de dois mil homens africanos foram recrutados para reforçar a expedição.

As tropas de Barreto chegaram à vila de Sena sem grandes problemas. No entanto, durante o período em que permaneceram naquela vila, um grande número deles, incluindo os seus bois e cavalos, sucumbiram à morte.

Embora mosquitos e moscas tsé-tsé proliferassem na área, as tropas de Barreto culparam os muçulmanos que viviam lá pela sua infelicidade, acusando-os de envenenar as águas e os pastos. Convencido de que os mouros (muçulmanos) eram mesmo os culpados, Barreto enviou os seus soldados para saquear as suas casas, aproveitando a maior parte do ouro que possuíam.

Enquanto isso, em Sena, Barreto despachou uma delegação dirigida por Francisco de Magalhães e Francisco Rafaxo para o Rei de Mutapa, Chisamharu Negomo Mupunzagutu, exigindo que ele cumprisse três condições para o estabelecimento da paz: Expulsar os muçulmanos; comprometer-se a receber sacerdotes católicos e adoptar a fé cristã; e finalmente, e mais importante ainda, entregar as minas de ouro à Coroa Portuguesa.

Surpreendentemente, o Rei Mupunzagutu aceitou todas as três condições acima, talvez acreditando que o problema se resolveria por si. De facto, o problema resolveu-se por si só, mais cedo do que ele esperava: A expedição militar de Barreto foi dizimada. As suas tropas ficavam doentes e iam morrendo em grande número todos os dias sem razão aparente, “até que apenas 180 homens ficaram vivos e esses vivos estavam todos doentes”. O próprio Francisco Barreto morreu de diarreia e de febre na vila de Sena.

A CHEGADA DOS MISSIONÁRIOS DOMINICANOS

Após o assassinato do Padre Da Silveira, os missionários Jesuítas pertencentes à Companhia de Jesus retiraram-se para Goa. Durante a sua retirada, os Padres da Ordem Dominicana preencheram a lacuna. Esses padres chegaram a Moçambique em 1577 a partir de Goa. Depois de construir um convento na Ilha de Moçambique, alargaram a sua área de actividade até Sofala, Sena e Tete.

Em 1628, aproveitando-se das clivagens na corte real de Mutapa, os portugueses intervieram e derrotaram o então rei, Nyambo Kapararidze, a quem substituíram por Mavura Mhande. Os portugueses conseguiram converter Mavura Mhande ao Cristianismo e obter as minas de ouro, embora a quantidade de ouro produzida na época fosse insignificante.

No entanto, no seu contínuo esforço para dominar o Império Mutapa e promover as suas ambições imperialistas; os portugueses sacrificaram outro sacerdote, Padre Luís de Espírito Santo, que pertencia à Ordem Dominicana.

Presume-se que o Padre Luís de Espírito Santo, natural do Sul do Vale do Zambeze, tenha sido um dos primeiros, se não o primeiro, moçambicano negro a ser ordenado padre católico. Foi o Padre Luis de Espírito Santo quem converteu o Rei Mavura Mhande ao Cristianismo:

“[…] Supõe-se que ele [Padre Luís de Espírito Santo] tenha sido membro da corte de um rei local. Supõe-se ainda que tenha sido um dos poucos padres africanos de Moçambique enviados pela Ordem Dominicana para treinar como sacerdote em Portugal ou em Goa.”

Tendo sido dominado por Mavura Mhande e pelos seus partidários portugueses, Kapararidze não desistiu. Em 1631, apoiado pelos seus aliados árabes, lançou uma das contra ofensivas mais sangrentas que o restauraram ao poder.

O Padre De Espírito Santo, que, na altura, era capelão das tropas portuguesas, foi capturado na ofensiva e condenado a prestar homenagem a Kapararidze. Em vez de cumprir a ordem, o Padre ameaçou Kapararidze com o “fogo do inferno onde ele se queimaria por toda a eternidade”. Continuando com as ameaças, ele disse ao Rei Nyambo Kapararidze:

“Dobre os seus joelhos diante do ‘Senhor Verdadeiro’, em vez de esperar que eu dobre os meus para si”.

Cansado de ouvir as suas advertências, o Rei Kapararidze ordenou aos seus homens que o matassem. Assim, ele foi amarrado a um tronco de uma árvore e morto com azagaias.

ENVOLVIMENTO DOS MISSIONÁRIOS CATÓLICOS NA ESCRAVATURA

Anos mais tarde, os Padres Jesuítas voltaram para o Vale do Zambeze, tendo, entretanto, reduzido as suas actividades missionárias. Tanto os Padres Jesuítas como os Padres Dominicanos passaram a possuir vastas extensões de terra que administravam com mão de ferro, recolhendo impostos, da mesma forma como faziam outros “prazeiros”.

Quando a escravatura começou, esses Padres não a condenaram. Pelo contrário, envolveram-se nela, mantendo também escravos nos seus prazos e envolvendo-se no negócio quando essa prática abominável se tornou lucrativa:

“Em termos de administração o seu (dos missionários jesuítas e dominicanos) modelo era em tudo semelhante aos prazeiros, dispondo de escravos para funções similares, como o comércio, policiamento, caça e guerra e tributando a actividade agrícola dos colonos livres que habitavam os seus terrenos […]. Exemplo desta faceta, mais comercial que missionária, é o (Padre) Dominicano Pedro da Trindade, conhecido em meados do século XVIII pelas suas várias minas de ouro, 30 mulheres e 1500 escravos!”

Desta história da Igreja Católica, pode ser retirada a seguinte conclusão: Desde o período de Vasco da Gama à assinatura da Concordata em 1940, a história geral da Igreja Católica caracterizou-se por uma estreita associação entre a promoção do Cristianismo e a promoção do Império Português.

Conforme observou o Padre Mateus Pinho Gwenjere no seu depoimento nas Nações Unidas em 1967, enquanto para o Vaticano, o envio dos missionários católicos às novas “terras descobertas” deveria ser uma forma de expandir o Cristianismo para além das fronteiras Europeias; para o governo português, era uma oportunidade para estabelecer e expandir o seu Império Ultramarino.

Com a proclamação da Primeira República em 1910, os novos líderes republicanos introduziram a secularização do Estado. Como foi o caso durante o período de Marquês de Pombal, esses líderes republicanos adoptaram uma série de medidas antirreligiosas, incluindo a proibição da educação religiosa nas escolas secundárias, o encerramento de conventos e a expulsão de ordens religiosas, incluindo dos Jesuítas. Isto resultou no rompimento das relações diplomáticas entre o Estado Português e a Igreja Católica.

No entanto, com o passar do tempo, o Governo Português percebeu que precisava da Igreja Católica para servir as suas ambições imperialistas nas suas colónias, mais notavelmente para contrariar a proliferação de missões protestantes e muçulmanas que, sendo quase exclusivamente estrangeiras, não tinham desejo em promover os interesses portugueses nessas colónias.

Assim, em 1919, o Governo permitiu a liberdade de actividade religiosa de várias congregações religiosas, incluindo dos Jesuítas, dos Dominicanos, e dos Franciscanos. Em troca, os missionários católicos comprometeram-se a prestar a sua colaboração para com o Estado português na sua “missão civilizadora”.

As actividades da Igreja Católica (exceptuando da Igreja profética de Dom Sebastiao Soares de Resende e Dom Manuel Vieira Pinto) confirmam as acusações de que a Igreja Católica era conivente com o regime opressor português na promoção do seu Império Ultramarino e na sua “missão civilizadora”.

Nas palavras do Bispo de Nampula, Dom Manuel Vieira Pinto, as relações entre a Igreja Católica e o Estado Português caracterizaram-se por uma colaboração activa que envolveu: concordar em propagar a cultura portuguesa; pregar um evangelho de obediência dócil às autoridades portuguesas; deixar-se usar pelo regime colonial; e manter em silêncio os crimes e as injustiças do colonialismo que violavam os direitos fundamentais do povo moçambicano.

REFLECTINDO SOBRE A ACTUAL IGREJA CATÓLICA EM MOÇAMBIQUE

O fundador da Sociedade dos Missionários da África, comummente conhecidos como “Padres Brancos”, Cardeal Charles Martial Allemand Lavigerie, delineou estratégias e políticas para missionários desta sociedade que trabalhavam em diferentes estações missionárias espalhadas pelo continente africano. Ele instruía aos seus missionários que respeitassem culturas e línguas dos povos africanos:

“Os missionários devem ser principalmente iniciadores […]. O trabalho duradouro deve ser realizado pelos próprios africanos […], deve ser claramente observado aqui que dizemos: tornar os africanos cristãos e não torná-los franceses ou europeus […]. No aspecto material, devemos deixar os africanos como eles são, isto é, verdadeiramente africanos.”

Durante o período colonial, o povo africano em Moçambique teve que abraçar a língua, cultura e civilização do povo português; as suas cerimónias aos antepassados, pedindo a sua intervenção para a sua defesa e protecção em tempos difíceis, eram proibidas pela Igreja Católica e pelo Governo Português. A Igreja recomendava que a população indígena buscasse a intervenção de santos europeus e não de seus antepassados para sua defesa e protecção.

Na verdade, segundo os críticos, uma grande consequência do colonialismo foi que a introdução da fé cristã nas chamadas “terras descobertas” teve, em parte, como objectivo abrandar os corações dos povos indígenas para saquear os seus recursos bem como destruir as suas religiões, civilizações e culturas.

Isto dito, os missionários católicos em África, principalmente em Moçambique, continuam, até a presente data, a misturar a doutrina cristã com a civilização europeia. É comum ver nas igrejas católicas em Moçambique, estátuas de uma Virgem Maria branca e de um Jesus Cristo branco, com olhos azuis e cabelos loiros. No entanto, é um facto bem documentado e os historiadores são unânimes de que Jesus Cristo era um judeu de pele escura.

A colocação nas igrejas moçambicanas de estátuas que não se identificam com a Virgem Maria e Jesus Cristo, nem com a maioria da população de Moçambique, pode ser interpretada como uma tentativa de sustentar a noção de supremacia branca. Como bem explicou o Cardeal Charles Lavigerie, fundador da Sociedade dos Missionários da África, a Igreja Católica deve ter como objectivo tornar os africanos cristãos e não torná-los europeus.


NB: Pode ler este e outros artigos relacionados no

https://umpadrevolucionario.com/language/pt

As referências bibliográficas e notas finais deste artigo foram omitidas. Uma referência detalhada pode ser encontrada na segunda edição do livro “Mateus Pinho Gwenjere – Um Padre Revolucionário” a partir do qual este artigo foi extraído. O livro encontra-se à venda nas livrarias das cidades de Maputo e Beira.


Comments

  1. A esterita colaboração entre a Igreja Católica e o Governo mancharam profundamente a pureza do Evangelho e da acção de Jesus Cristo narrada nas sagradas escrituras. Jesuitas, Domicanos e Franciscanos participaram nesta façanha. O Cardeal Charles Lavigiere, os Bipos Dom Sebastião Soares de Resende e Dom Manuel Vieira Pinto romperam com esse paradigma de servilismo e obediência cega à autoridade colonial portuguesa. Este é o desafio colocado à Igreja Católica actual de modo a tornar-se autêntica e ao serviço dos mais excluídos.

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