POR QUE O REI MUPUNZAGUTU SE REVOLTOU CONTRA O PADRE GONÇALO DA SILVEIRA?

O Padre Gonçalo da Silveira foi o superior provincial dos Jesuítas em Goa, Estado da Índia. Após receber informação sobre a existência do Império Mwene Mutapa, este Padre ofereceu-se para trabalhar em Moçambique.  (“Mwene Mutapa” — Monomotapa na versão portuguesa — significa governante de Mutapa) um reino medieval de Shonas localizado perto de Harare, Zimbábue, entre os rios Zambeze e Limpopo, também conhecido como “Great Zimbabwe” (“Grande Zimbábue”). Naquela época, os portugueses acreditavam que “Mutapa” era o local onde as proverbiais minas de ouro do Rei Salomão da Bíblia haviam sido encontradas.  

A expedição missionária de Da Silveira chegou à costa de Moçambique em Fevereiro de 1560. Acompanhado pelo Padre André Fernandes e pelo Irmão André da Costa, seguiram para Inhambane onde, depois de sete semanas, converteram à fé cristã o rei, a rainha, e aproximadamente 400 súbditos.

Encorajado pelo sucesso da sua Missão em Inhambane, em Junho de 1560, o Padre Da Silveira deixou os seus confrades lá e dirigiu-se para o Reino de Mutapa, seguindo o curso do rio Zambeze. Ao chegar à vila de Sena e antes de entrar na corte real de Mutapa, o Padre Da Silveira pediu permissão para ser recebido pelo então rei, Chisamharu Negomo Mupunzagutu.

Como era costume do Rei antes de receber seus hóspedes, Mupunzagutu enviou-lhe presentes que incluíam uma grande quantia em ouro, vacas, além de trabalhadores, inclusive mulheres, para lhe prestarem serviços. O Padre Da Silveira recusou todos os presentes oferecidos. O Rei Mupunzagutu não achou normal o desinteresse do Da Silveira por tudo o que lhe ofereceu. Acima de tudo, ficou intrigado quando foi informado que Da Silveira mantinha uma bela mulher trancada dentro da sua cabana.

A “bela mulher” a que os informantes do Rei se referiam era, na verdade, a estatueta da Virgem Maria que o Padre Da Silveira mantinha no seu altar. Quando estava prestes a receber o Padre, o Rei, que queria ver a tal “bela mulher”, deu instruções para que ele lá fosse com a sua companheira. O Padre Da Silveira satisfez a ordem. Ele foi calorosamente recebido pelo Rei, a quem ele disse que a estatueta da mulher que ele segurava nas mãos era “a imagem da mãe de Deus à qual todos os reis estavam sujeitos”. O Rei pediu para manter a “bela mulher”. Da Silveira ficou feliz em entregar a estatueta. 

Passados ​​alguns dias, o Rei sussurrou ao Padre Da Silveira, bem como à sua mãe, e a alguns comerciantes portugueses, que a estatueta lhe falava à noite, contando-lhe coisas que ele não compreendia bem. O Padre disse ao Rei que começaria a entender as mensagens da Virgem Maria assim que fosse batizado e se tornasse cristão. Tendo dito isso, o rei exigiu ser batizado imediatamente.

O Padre Da Silveira ensinou ao Rei Mutapa e à sua mãe os primeiros rudimentos do catecismo, depois do qual os baptizou com os nomes de Dom Sebastião, nome do rei de Portugal na época, e Dona Maria, nome da Virgem Maria. O Padre também conseguiu converter e baptizar 300 súbditos do Rei.

Os conselheiros árabes do Rei Mupunzagutu não ficaram nada satisfeitos com o recém-desenvolvido relacionamento, pois, segundo eles, a intenção dos portugueses era monopolizar o comércio. Eles lembraram ao Rei que foi pela mesma artimanha que os portugueses foram autorizados a entrar e a ocupar violentamente o Reino de Sofala que lhe prestava vassalagem. Continuando, os mesmos conselheiros disseram ao Rei que Da Silveira era um poderoso feiticeiro, um “muroyi” (mago traiçoeiro) enviado pelos portugueses para preparar o caminho para a tomada do Reino:

“A água que ele põe na cabeça das pessoas e o sal que coloca em suas bocas são poderosos feitiços para conquistar o povo do Rei Mutapa e, a partir daí, usurpar o seu Reino. Tenha cuidado, Sua Majestade. Os portugueses estão conspirando contra o Senhor.”

Meio crédulo, o recém-convertido Rei “Sebastião” contou ao Padre Da Silveira o  que ele ouvira  sobre  ele  dos  seus conselheiros.  Ao fazer isso, ele esperava que o Padre fugisse para não ser forçado a matá-lo. António Caiado, o intérprete português que era  de  confiança do  Rei,   implorou ao Padre que deixasse o reino imediatamente. No entanto, o Padre Da Silveira não arredou pé, limitando-se a dizer: “Estou mais preparado para morrer do que os muçulmanos estão para me matar”.

Em 16 de Março de 1561, Da Silveira foi estrangulado até à morte dentro da sua cabana enquanto dormia. Os dois serventes de Caiado que ficavam com o Padre contaram que, pouco depois de ele ter ido dormir, sete homens correram para a sua cabana e o imobilizaram:

 “Um homem sentou em cima do seu peito, quatro deles o levantaram pelos braços e pernas, enquanto outros dois amarravam uma corda em volta do seu pescoço e o estrangularam. Depois, o arrastaram e deitaram o seu cadáver no rio Musengezi onde foi aparentemente devorado por crocodilos.”

Muscalu apresenta a razão pela qual o Rei de Mutapa se revoltou contra o Padre Da Silveira: Antes da chegada deste Sacerdote ao Reino de Mutapa e do baptismo do Rei e da sua família, bem como dos seus súbditos, as pessoas ali existentes, incluindo os muçulmanos, viviam em harmonia praticando as suas diferentes religiões e rituais culturais sem qualquer interferência.

A adopção do Cristianismo, conforme proposto pelos missionários católicos, implicava que o Rei teria de expulsar os muçulmanos e acabar com os cultos tradicionais Shonas daquela região, incluindo os sacrifícios que ofereciam aos seus ancestrais em busca de defesa ou protecção em momentos difíceis, tais como doenças, falta de chuvas ou má colheita. Isso representava uma ameaça para a unidade do reino.

Não se duvida que o Padre Da Silveira pregasse contra a veneração dos ancestrais. O seu confrade, o Padre André Fernandes que permaneceu em Inhambane, muitas vezes interrompia os rituais religiosos dos nativos daquela região. “Um dia, quando os cafres (uma palavra pejorativa derivada do árabe “kaffir” para significar negro, infiel ou descrente) realizavam os seus abomináveis sacrifícios”, O Padre André dirigiu-se ao local para interromper a cerimónia, partindo e pisando com os seus pés todos os objectos deste sacrifício.

Para vingar a morte do Padre Da Silveira ao saber do seu assassinato, os portugueses enviaram de Goa uma expedição de mil homens em 1568, sob o comando de Francisco Barreto, um soldado experiente e ex-governador do Estado da Índia. Além das tropas acima referidas, foram recrutados mais de dois mil homens africanos para reforçar a expedição.

Enquanto isso, em Sena, Barreto despachou uma delegação dirigida por Francisco de Magalhães e Francisco Rafaxo para o Rei de Mutapa, Chisamharu Negomo Mupunzagutu, exigindo que ele cumprisse três condições para o estabelecimento da paz: Expulsar os muçulmanos; comprometer-se a receber sacerdotes católicos e a fé cristã; e finalmente, e mais importante ainda, entregar as minas de ouro à Coroa Portuguesa.

Surpreendentemente, o Rei Mupunzagutu aceitou todas as três condições acima, talvez acreditando que o problema se resolveria por si. De facto, o problema resolveu-se por si só, mais cedo do que ele esperava: A expedição militar de Barreto foi dizimada.

Durante o período que as tropas portuguesas permaneceram na vila de Sena, um grande número delas, incluindo seus bois e cavalos, sucumbiu à morte. Barreto culpava os muçulmanos que lá viviam pela infelicidade dos portugueses, acusando-os de envenenar as águas e os pastos. Convencido de que os muçulmanos eram de facto os culpados, Barreto enviou os seus soldados para saquear as suas casas, aproveitando a maior parte do ouro que possuíam.  

Mesmo assim, as tropas portuguesas continuavam a ficar doentes e iam morrendo em grande número todos os dias sem razão aparente, “até que apenas 180 homens ficaram vivos e esses vivos estavam todos doentes”.  O próprio Barreto morreu de diarreia e de febre na vila de Sena.


NB: Pode ler este e outros artigos relacionados no https://umpadrevolucionario.com

As referências bibliográficas e notas finais deste artigo foram omitidas. Uma referência detalhada pode ser encontrada na segunda edição do livro “Mateus Pinho Gwenjere – Um Padre Revolucionário” a partir do qual este artigo foi extraído. O livro encontra-se à venda nas livrarias das cidades de Maputo e Beira.